quarta-feira, outubro 01, 2014

Direito ao esquecimento

                - Lembra-se de mim?
                Arrisco o contacto. À minha frente um rosto enrugado, de um corpo encarquilhado. Reconheço o passar dos anos no interlocutor e ficando surpreendido pelo reencontro e em espaço público, aproximo-me.
O olhar, indiferente, responde à minha pergunta. Volveram-se umas décadas, eu acedia à sua casa para jogar à bola, cumprimentando com deferência, atravessando os compartimentos para aceder ao pátio, onde os pontapés certeiros na bola eram os argumentos daquelas tardes.
Perante a negação, não insisto com o
- Lembra-se de mim?
mudo de estratégia. Não utilizo o egocêntrico
- Sabe o meu nome?
Pela experiência em reencontrar-me com tios e tias de ano a ano, ou algumas vezes, em encontros familiares mais alongados no tempo, quando os vejo confusos, digo logo o meu nome próprio e a minha ascendência, ajudando o meu familiar a situar-me com o seu irmão, ou irmã, ou cunhado ou cunhada. Esta comunicação direta evita contratempos de memória e permite aos mais velhos ordenarem prontamente as ideias.
Aqui em S. João da Madeira, substituo a ascendência pelo grau de amizade com os filhos e o desconhecimento mantém-se.
Enquanto insisto, utilizando o nome de família, recordo os episódios daqueles que deixei de ver durante anos, alguns mesmo décadas e como no reencontro, ao cumprimentarem-me, fiquei indiferente a um careca com óculos, ou a um barrigudo de barbas, ou a uma magricela envelhecida. Desculpando-me aleguei o longo tempo de desencontro, as mudanças físicas, a fisionomia alterada, as mudanças de morada, o relacionamento com várias pessoas em concelhos diferentes e ali, naquele reencontro, com alguém que não frequento a casa há trinta anos, ou mesmo as imediações da habitação há pelo menos vinte anos, com quem não me cruzei seguramente nos últimos dez, obrigo-o a um exercício de reconhecimento de um adulto já com cabelos brancos, quando na sua memória, o máximo que eu podia ser era um adolescente, bastante magro.
Todas as coordenadas utilizadas esbarraram-se no não reconhecimento. A dificuldade é compensada por um acenar de um dos seus filhos, situado no outro lado da vitrine. Verifico uma certa lógica de raciocínio, vencendo a dificuldade da falta de memória, reconhecendo a amizade através daquele aceno no presente. Faço conversa de circunstância. Intromete-se uma terceira pessoa. Despeço-me, desejando saúde e agradecendo todas as atenções do passado.
- Estás igual.
Habituei-me a ouvir o monótono comentário nos reencontros.
Desta vez, não.
Terei que aprender a lidar com o esquecimento.        
Evitarei o
- Lembra-se de mim?
E acima de tudo, resistirei ao
- sabe o meu nome?
na hipótese dos meus familiares não se recordarem de mim.
 
(a publicar no dia 02/10/14)

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