compilação dos textos publicados no jornal labor (www.labor.pt), de 2004 a 2020.
quarta-feira, fevereiro 25, 2015
O Professor sem fato cinzento
quarta-feira, fevereiro 11, 2015
Banco de Livros Escolares
O leitor regular destes artigos de opinião deve lembrar-se de uma crónica, em que dissertei sobre a cartilha do "Fontismo", enquanto ajudava um dos meus filhos a rever a matéria, antes do teste da disciplina de História.
Dois anos depois voltei à mesma matéria escolar, desta vez com a minha filha. Revi os gráficos de sucesso da Regeneração Portuguesa, o aumento da população, da escolaridade, o número de quilómetros de rodovias e ferrovias construídas, a rede de portos e mais outras medidas marcantes da Monarquia Liberal, sobretudo, em matéria de justiça. Acrescentei um dado importante, em falta no livro, importante para se entender a necessária modernização do país, precisamente a dívida de Portugal. Sem esse dado, aquelas páginas parecem de um livro de contos de fadas.
Por agora concentremo-nos no manual de estudo. Enquanto formulava as perguntas, observava as marcas deixadas pelo irmão. Uns rabiscos, um picotado numa página, uns bigodes numa gravura e um ou outro apontamento apropriado à disciplina. Mesmo usado, quando terminar o ano lectivo, o livro será remetido para algum familiar ou amigo mais novo, cuja escola o tenha adoptado.
Este exemplo familiar, de partilha, serve de introdução ao tema a desenvolver esta semana.
A oferta de manuais escolares, aos alunos do 1º ciclo, tem sido tema de debate pelas forças políticas da cidade. No passado, essa gratuitidade contemplava apenas os agregados familiares dos escalões A e B e a partir do ano passado, passou a incluir-se todos os escalões do IRS, incluindo aqueles com vencimentos mensais superiores a 7.000€.
A proposta surge de uma força política dita de esquerda, que contraria toda a lógica ideológica e até de justiça social, pela qual esse partido tem lutado nos últimos 40 anos.
Sendo uma promessa eleitoral, caracteriza a deriva programática desse partido, justificando-se a proposta pela tentativa de agradar aos eleitores de um determinado escalão etário, ou a uma assembleia de uma Associação de Pais.
No entanto, há indicadores preocupantes acerca do estado do ensino em S. João da Madeira. Depois de uma década a restaurar e a construir escolas, seria importante analisar alguns dados:
· Taxa de analfabetismo
· Abandono escolar
· Saída antecipada do ensino
· Saída precoce do ensino
Apenas disponho dos valores indicados na Carta Educativa no concelho. Convém explicar alguns dos conceitos, para os leitores menos familiarizados com esta linguagem entenderem melhor a análise, aproveitando para apresentar o respectivo valor.
A taxa de analfabetismo, indicador que não precisa de explicação, era de 4,8% no último Censos.
A taxa de abandono escolar, correspondente a jovens até aos 15 anos que não concluíram o 9º ano era de apenas 1,3%
A taxa de saída antecipada do ensino, correspondente à população entre os 18 e os 24 anos que não concluíram o 9º ano, era de 24,8%.
Finalmente, a taxa de saída precoce do ensino, correspondente à população entre os 18 e os 24 anos sem concluir o ensino secundário, era de 45,8%.
Este último indicador corresponde à falta de qualificação dos recursos humanos da população do concelho. É dos valores mais elevados dos concelhos do Entre Douro e Vouga. Para comparação, apresento o valor da média europeia, 19%, o que reflecte o atraso estrutural da cidade em contexto europeu.
Cruze-se este indicador com os valores retirados do Censos 2011, no que concerne à população com 15 ou mais anos, sem o ensino secundário, precisamente 69,2%. Comparando-se com o recenseamento da década anterior, ou seja de 2001, havia 77,3% da população que tinha como habilitações máximas o 9º ano. Uma melhoria, embora pouca significativa, atendendo ao aumento populacional verificado entre Censos (3%).
Em suma, durante a década passada, o incentivo à qualificação dos jovens deveria ter sido semelhante ao estímulo verificado na criação e instalação de indústrias de base tecnológica.
Compreende-se que oferecer os manuais a todos os alunos do 1º ciclo é um erro político. O esforço municipal deveria centrar-se nos alunos mais velhos.
Uma das formas de contrariar a saída precoce do ensino, é precisamente estimulando a continuidade dos alunos com mais de 16 anos, tomando-se medidas como a oferta de manuais escolares, criação de bolsas de mérito, ocupação laboral em part-time ao fim de semana, entre outras medidas julgadas oportunas, como por exemplo, premiar a turma e a escola com melhor desempenho no ranking nacional, ou seja, distinguir pela positiva os alunos do concelho, incentivando-os ao estudo e à conclusão do 12º ano.
Com a medida atual, nada vai alterar nos próximos anos nas habilitações da população do concelho.
Espero que o exemplo com que iniciei o texto, ao abrigo do título do mesmo, reformule a política municipal de aquisição de manuais escolares. A Câmara Municipal pode e deve criar um banco de livros escolares, permitindo a troca de livros, ou seja, o empréstimo durante um ano lectivo, obrigando à sua devolução no final do mesmo. Aos alunos de agregados familiares de escalão A e B, continuava-se a oferecer os manuais, no entanto, teriam as mesmas obrigações de restituição.
Com este sistema e atendendo ao orçamento municipal para aquisição de manuais, em poucos anos, os alunos abrangidos seriam mais e progressivamente ficariam cobertos todos os graus de ensino.
A esta proposta, resta estabelecer um objectivo, para um horizonte temporal de 2020 e fixar as metas anuais. Tudo com a envolvência dos agrupamentos escolares. Para não continuarem a ser esquecidos neste processo.
(a publicar no dia 12/02/15)
quarta-feira, fevereiro 04, 2015
À volta de Arouca
Como leitor, vou perseguindo títulos e autores intemporais. Passo dias, meses em páginas escritas há vários anos. Sucedem-se clássicos nacionais ou estrangeiros, intercalados por requisições em bibliotecas, com prazos apertados de entrega. Vou espreitando as novidades editoriais, pela curiosidade em seguir os escritores contemporâneos, só que na maior parte das vezes adio leitura ou compra, para melhores ocasiões.
Nos últimos meses, despertou-me interesse ler o primeiro livro de Afonso Reis Cabral. Retive, quando o livro foi publicado, que a ação centrava-se numa aldeia de Arouca e foi isso que me fez agendar a sua leitura.
É interessante a literatura cruzar-se com os nossos locais. Analisarmos como as paisagens, que observamos vezes sem conta, são descritas ou como influenciam a criatividade dos autores.
Em “A explicação dos pássaros”, António Lobo Antunes insere a cor cinza azulada, de cobalto, das tranquilas águas da Ria de Aveiro, em dias enevoados, para no final ali afogar o perturbado professor. Um dramático desfecho, acompanhado pelo debicar irónico dos pássaros ao corpo do defunto, que viveu a sua infância deslumbrado pela definição singela, de seu pai, acerca das aves.
Para Arouca, em “O meu irmão”, o livro de Afonso Reis Cabral, eu pretendia um pouco mais do que verificar a capacidade do jovem escritor em enquadrar as montanhas e os rios das serranias. Em primeiro lugar, queria localizar a aldeia onde decorre o enredo. Além deste aspeto geográfico, pretendia identificar traços da tradição daquela zona do distrito, em especial na oralidade da transmissão de contos e por fim, ver a caracterização dos habitantes das aldeias, ou seja, os estereótipos retidos pelo escritor.
Antes de prosseguir, é importante justificar as minhas expectativas.
Como muitos, durante os anos da adolescência, fiz da Serra da Freita o espaço privilegiado do contacto com a natureza. Caminhadas, idas ao rio, descidas à Mizarela, dormidas em campismo selvagem, foram o mote durante esses anos. Mais tarde, já estudante no Porto, travei conhecimento de uma aposta que os habitantes dessa Serra faziam aos forasteiros. Tratava-se de um desafio, o aldeão dizia que bebia mais depressa 10 copos de cerveja, do que o forasteiro um copo de aguardente. Com três condições: não se podia mexer no copo do outro; o aldeão bebia uma cerveja de avanço e só após ser pousado o primeiro copo, é que o forasteiro podia começar a beber. Muitos incautos caíram na esparrela. A partida era simples, ao pousar o primeiro copo, o aldeão virava-o ao contrário e envolvia o copo de aguardente, impedindo o forasteiro de lhe aceder. As outras nove cervejas eram bebidas pelos outros aldeões, entre gargalhadas e alguma troca de piropos.
Esta historieta é significativa para se perceber a relação de desconfiança que os aldeões mantinham com os forasteiros e de como ambas as partes se tentavam enganar, até conquistarem a confiança.
Esta reserva, sempre me norteou quando visitava uma das muitas aldeias de Arouca, pela primeira vez. Ou quando me cruzava com algum pastor pelas serranias. Andava por lá à procura de vestígios do passado humano ou em busca de lugares frescos para passar tardes de verão, em sossego. Aos poucos conseguia uma história, um gracejo, uma malícia, uma opinião sobre o passado da serra, uma sugestão sobre a localização de uma casa, sobre a estrada a ser construída e pouco mais.
Tinha menos idade, menos cabelos brancos, menos experiência em conseguir fazer os outros falar. As histórias curiosas chegavam até mim, contadas longe da serra. Assim, descobri que na Aldeia da Pena, o “morto matou o vivo” e mais tarde, vi isso escrito numa reportagem e se a memória não me atraiçoar, num prospeto turístico. Para não deixar ninguém intrigado, aqui fica a explicação, o dito vivo escorregou numa rampa íngreme e o caixão, contendo um corpo, caiu-lhe em cima e matou-o.
Ainda persegui uma informação curiosa, numa das aldeias, que em tempos viveu um fulano que teve 21 filhos, tendo apenas casado, às portas da morte, para receber a extrema-unção. Nunca apurei se os filhos eram de várias mulheres e de quantas. Nem soube nunca, como foi a vivência deste “Casanova” com as suas mulheres, nem com os seus descendentes. Tão pouco apurei o seu nome. Fico sempre com esperança de um dia ler toda a sua história, ou de um dia me encher de paciência e voltar àquelas bandas com tempo, procurando recolher mais dados sobre o assunto.
No livro publicado de Afonso Reis Cabral, o enquadramento do rio Paiva é bem conseguido. A sua presença é constante, com o borbulhar das suas águas em pleno Inverno e a frescura obtida nos dias de verão. O vale, os declives infernais, o serpenteado das estradas estão bem retratados. As aldeias abandonadas, ou com poucos habitantes permanentes são infelizmente realidades, facilmente encontradas por aquelas bandas.
Num livro premiado, esperava-se mais assertividade no nome da aldeia, ou em contrapartida utilizar nomes fictícios para todas. Contudo, onde o enredo perde força é precisamente no preconceito urbano. As tradições locais são mal retratadas, o funeral apressado e a rapinagem à aldeia pelos presentes na cerimónia são exageros. Infelizmente, o rol de figurantes nada acrescenta em abonatório. O diálogo entre o narrador e dois desses habitantes locais, na venda, é confrangedor. As personagens secundárias conduzidas para um determinado tipo, são afinal completamente diferentes. A dispneia do pai enlutado, introduz a transmissão oral de contos fantásticos, embora um pouco tarde para o leitor.
Felizmente, o livro contava uma outra história e por essa, vale a pena a sua leitura.
(a publicar no dia 05/02/15)