quarta-feira, fevereiro 04, 2015

À volta de Arouca

                Como leitor, vou perseguindo títulos e autores intemporais. Passo dias, meses em páginas escritas há vários anos. Sucedem-se clássicos nacionais ou estrangeiros, intercalados por requisições em bibliotecas, com prazos apertados de entrega. Vou espreitando as novidades editoriais, pela curiosidade em seguir os escritores contemporâneos, só que na maior parte das vezes adio leitura ou compra, para melhores ocasiões.

Nos últimos meses, despertou-me interesse ler o primeiro livro de Afonso Reis Cabral. Retive, quando o livro foi publicado, que a ação centrava-se numa aldeia de Arouca e foi isso que me fez agendar a sua leitura.

                É interessante a literatura cruzar-se com os nossos locais. Analisarmos como as paisagens, que observamos vezes sem conta, são descritas ou como influenciam a criatividade dos autores.

                Em “A explicação dos pássaros”, António Lobo Antunes insere a cor cinza azulada, de cobalto, das tranquilas águas da Ria de Aveiro, em dias enevoados, para no final ali afogar o perturbado professor. Um dramático desfecho, acompanhado pelo debicar irónico dos pássaros ao corpo do defunto, que viveu a sua infância deslumbrado pela definição singela, de seu pai, acerca das aves.

                Para Arouca, em “O meu irmão”, o livro de Afonso Reis Cabral, eu pretendia um pouco mais do que verificar a capacidade do jovem escritor em enquadrar as montanhas e os rios das serranias. Em primeiro lugar, queria localizar a aldeia onde decorre o enredo. Além deste aspeto geográfico, pretendia identificar traços da tradição daquela zona do distrito, em especial na oralidade da transmissão de contos e por fim, ver a caracterização dos habitantes das aldeias, ou seja, os estereótipos retidos pelo escritor.

                Antes de prosseguir, é importante justificar as minhas expectativas.

                Como muitos, durante os anos da adolescência, fiz da Serra da Freita o espaço privilegiado do contacto com a natureza. Caminhadas, idas ao rio, descidas à Mizarela, dormidas em campismo selvagem, foram o mote durante esses anos. Mais tarde, já estudante no Porto, travei conhecimento de uma aposta que os habitantes dessa Serra faziam aos forasteiros. Tratava-se de um desafio, o aldeão dizia que bebia mais depressa 10 copos de cerveja, do que o forasteiro um copo de aguardente. Com três condições: não se podia mexer no copo do outro; o aldeão bebia uma cerveja de avanço e só após ser pousado o primeiro copo, é que o forasteiro podia começar a beber. Muitos incautos caíram na esparrela. A partida era simples, ao pousar o primeiro copo, o aldeão virava-o ao contrário e envolvia o copo de aguardente, impedindo o forasteiro de lhe aceder. As outras nove cervejas eram bebidas pelos outros aldeões, entre gargalhadas e alguma troca de piropos.

                Esta historieta é significativa para se perceber a relação de desconfiança que os aldeões mantinham com os forasteiros e de como ambas as partes se tentavam enganar, até conquistarem a confiança.

                Esta reserva, sempre me norteou quando visitava uma das muitas aldeias de Arouca, pela primeira vez. Ou quando me cruzava com algum pastor pelas serranias. Andava por lá à procura de vestígios do passado humano ou em busca de lugares frescos para passar tardes de verão, em sossego. Aos poucos conseguia uma história, um gracejo, uma malícia, uma opinião sobre o passado da serra, uma sugestão sobre a localização de uma casa, sobre a estrada a ser construída e pouco mais.

                Tinha menos idade, menos cabelos brancos, menos experiência em conseguir fazer os outros falar. As histórias curiosas chegavam até mim, contadas longe da serra. Assim, descobri que na Aldeia da Pena, o “morto matou o vivo” e mais tarde, vi isso escrito numa reportagem e se a memória não me atraiçoar, num prospeto turístico. Para não deixar ninguém intrigado, aqui fica a explicação, o dito vivo escorregou numa rampa íngreme e o caixão, contendo um corpo, caiu-lhe em cima e matou-o.  

                Ainda persegui uma informação curiosa, numa das aldeias, que em tempos viveu um fulano que teve 21 filhos, tendo apenas casado, às portas da morte, para receber a extrema-unção. Nunca apurei se os filhos eram de várias mulheres e de quantas. Nem soube nunca, como foi a vivência deste “Casanova” com as suas mulheres, nem com os seus descendentes. Tão pouco apurei o seu nome. Fico sempre com esperança de um dia ler toda a sua história, ou de um dia me encher de paciência e voltar àquelas bandas com tempo, procurando recolher mais dados sobre o assunto.  

                 No livro publicado de Afonso Reis Cabral, o enquadramento do rio Paiva é bem conseguido. A sua presença é constante, com o borbulhar das suas águas em pleno Inverno e a frescura obtida nos dias de verão. O vale, os declives infernais, o serpenteado das estradas estão bem retratados. As aldeias abandonadas, ou com poucos habitantes permanentes são infelizmente realidades, facilmente encontradas por aquelas bandas.

                Num livro premiado, esperava-se mais assertividade no nome da aldeia, ou em contrapartida utilizar nomes fictícios para todas. Contudo, onde o enredo perde força é precisamente no preconceito urbano. As tradições locais são mal retratadas, o funeral apressado e a rapinagem à aldeia pelos presentes na cerimónia são exageros. Infelizmente, o rol de figurantes nada acrescenta em abonatório. O diálogo entre o narrador e dois desses habitantes locais, na venda, é confrangedor. As personagens secundárias conduzidas para um determinado tipo, são afinal completamente diferentes. A dispneia do pai enlutado, introduz a transmissão oral de contos fantásticos, embora um pouco tarde para o leitor.

                Felizmente, o livro contava uma outra história e por essa, vale a pena a sua leitura.

 

(a publicar no dia 05/02/15)