A música é uma das artes que é pouco tangível. Recorre-se a gravações em vários formatos tecnológicos para ouvi-la e terminando essa auscultação, não sobra nada de concreto. Fica o registo na memória e numa audição seguinte, poderão existir partes bem assimiladas, decoradas até, que permitem ao ouvinte trautear, ou mesmo cantar, se for o motivo.
Na presença de executantes, em concertos ao vivo, existe uma relação diferente. Naturalmente, que os formatos tecnológicos são substituídos pelos instrumentos executados pelos músicos. A amplificação de som pode introduzir uma dose de tecnologia e as gamas sonoras serem trabalhadas, para o espectador ter oportunidade de ouvir os sons graves, intermédios e agudos sem qualquer dificuldade.
O artista é a alma do concerto. A sua preparação técnica, aliada à sua capacidade de interpretação, sobretudo esta última, são factores que contribuem para a qualidade do espetáculo.
Sexta-feira passada, portanto, dia 25 de Setembro, tive oportunidade de assistir ao recital de Piano, por Nelly Santos Leite e Graça Mota, promovido pela Academia de Música de Santa Maria da Feira e incluído no programa de festejos do seu 60º aniversário.
Para os mais entendidos nestas andanças musicais, este duo apresentou-se a público no final da década de 80, chegando a atuar em S. João da Madeira, na Biblioteca Municipal.
Praticamente 27 anos passados, sentei-me de novo numa plateia para ouvir este Duo a 4 mãos. Em ambiente familiar, ou de grande proximidade às artistas e à instituição promotora do concerto, era importante verificar qual seria a capacidade interpretativa das pianistas e o seu sincronismo, tantos anos passados.
A maturidade artística ficou evidente logo na primeira peça tocada. Em Suite Dolly op. 56, de Gabriel Fauré, à sobriedade dos andamentos iniciais, seguiu-se uma execução bem quente do “Le Pas Espagnol”, que mexeu com a plateia, transportando-a para uma viagem sonora ao país vizinho. Estava dado o mote do concerto.
Até ao intervalo, os diálogos entre oitavas fizeram-se ouvir nas seleccionadas “Danças Eslavas” de Dvorak ou na magnificência de Brahms, com as duas primeiras “Danças Húngaras”. A plateia estava rendida ao ritmo incutido pelas artistas e a satisfação era visível no rosto dos assistentes, durante a merecida pausa das pianistas.
Na 2ª parte, após a inquietude das “Melodias Rústicas Portuguesas” de Fernando Lopes Graça, que como é evidente não deixou nenhum espetador indiferente, seguiu uma interpretação fabulosa desse brilhante tema de George Gershwin, “Rhapsody in Blue”. Uma sonoridade bem americana, perto do registo jazzístico, como é reconhecido, fazendo parte do repertório de muitos duos a quatro mãos ou mesmo a dois pianos e à qual Nelly Santos Leite e Graça Mota incutiram uma versão extraordinária, com uma cadência estonteante.
No final do concerto, pela longevidade do duo, retive a ideia dos vários caminhos da música. É sempre bom recomeçar um, no qual o artista se sente feliz.
Depois de muitos anos de ensino de música, da sua divulgação na cidade, com a promoção de concursos de piano e também com o acumular da direção de Academia de Música de S. João da Madeira, Nelly Santos Leite sentou-se ao piano, não demonstrando qualquer amargura, ou mesmo ressentimento.
Uma lição de vida, demonstrável pelo entusiasmo com que tocou o repertório musical escolhido.
Uma importante atitude, deixando os mais novos admirados pela segurança exibida.
(a publicar no dia 1/10/15)