quarta-feira, dezembro 06, 2017

Nem governo nem Estado

Na primeira música que ouvi dos Xutos e Pontapés, corria o ano de 1985, à segunda frase cantada fiquei perplexo e maravilhado. O disco era uma coletânea de bandas nacionais dos estilos marginais da época: punk-rock, pós-punk, gótico, urbano-depressivo e outros géneros urbanos. As duas primeiras faixas estavam entregues aos Xutos: Esquadrão da Morte e 1º de Agosto. Ao vivo, cheio de energia, com ritmo intenso proveniente de uma bateria tocada de forma rápida, uma linha de baixo com presença e uma guitarra a produzir riffs intensos. O som assemelhava-se ao de uma banda britânica, os The Clash, cujo álbum “Combat Rock” tocava com frequência lá em casa. Ao paradoxo ouvido inicialmente, “Por não querer aquilo que me é dado”, seguiu-se a tal frase ”Por não querer nem governo, nem Estado”, assim mesmo, toda a crueldade anarquista explícita era cantada de forma seca pela voz do vocalista. Seguiam-se mais dois versos, repetia duas vezes. Um refrão a começar, um simplismo da escrita punk. A meio ouviam-se os coros, com interjeições, repetidas pelo público. E claro havia um solo de guitarra. Estavam-me apresentados os Xutos e Pontapés.

Leitor do jornal Blitz, desde a primeira hora, todo aquele envolvimento urbano me fascinou. Aderi à roupa preta, um sóbrio sobretudo, uma gabardine, o casaco de cabedal, as t-shirt alusivas a bandas (que ainda conservo), mais uma botas da tropa resgatadas do sótão de casa dos meus pais e passei a ser consumidor de música regular, vendo concertos ou adquirindo discos, variando entre estéticas, conforme as mencionadas no parágrafo anterior. De tal modo que de tenra idade, fui para Lisboa assistir a dois concertos, faltando às aulas, com a devida autorização parental.     

Voltando aos Xutos e Pontapés. Encontrar os discos deles, naquela época era difícil, só tinham editado um álbum (1978/82), sem muita difusão. Era difícil chegar a esse som. Tudo funcionava na base da gravação em cassetes – fita magnética com disponibilidade entre 60 a 90 minutos. Ouvir aquele som era irreverente e provocador: toda a família entendia as letras, nas quais os valores aceites pela sociedade eram criticados. Era uma música de intervenção, de combate, sem claras referências partidárias.

Entretanto, é editado o disco “Cerco”, com a introdução de um novo instrumento musical, o saxofone. As letras eram menos rudes. Apesar das dificuldades em editar o disco, por desinteresse das editoras, ainda agarradas às músicas de estreia do grupo, a assimilação do conceito pelo meio musical, é bem conseguida. Os Xutos definem-se como um grupo rock, nas aparições em programas de televisão. Os concertos em espaços urbanos sucedem-se, aproveitando a banda para produzir um novo disco ao vivo. O visual também é aligeirado, retiram-se as correntes, as roupas rasgadas como nos primórdios do movimento punk de 1977 e os músicos passam a vestir o preto integral, com o lenço vermelho ao pescoço, apenas com a única transgressão a ficar pendurada na orelha de Zé Pedro – um brinco em forma de cruz. É preciso mencionar o fenómeno das rádios piratas, então emergentes com a possibilidade de divulgar música maldita, distante dos tops de vendas, para explicar a difusão de grupos como este.

Em 1987, os Xutos e Pontapés lançam um novo disco. A sonoridade fica mais acessível ao grande público. As letras passam a ser mais domésticas. É incluída uma versão de “Minha Alegre Casinha”, uma música em voga na juventude dos nossos progenitores. A acessibilidade fomenta a divulgação. As rádios e as televisões apadrinham a Casinha. A banda consegue fazer uma digressão nacional e até surgem numa campanha publicitária a uma determinada marca de refrigerantes. A cópia da indumentária dos músicos, em especial o lenço vermelho, passa a fazer parte das vestes dos jovens, que nos concertos cruzam os braços por cima da cabeça. Gestos que se repetiram por muitos anos e por várias cidades, vilas e aldeias do país.

Talvez seja este o momento em que os Xutos e Pontapés conseguem a eternização no panorama musical português. Para muitos jovens por esse país fora, este foi o primeiro concerto a que assistiram. O primeiro contacto com uma música rock, com influências do simplismo do punk-rock, expressos em princípios musicais enérgicos e com ritmos acelerados, de refrões simples. Uma fórmula que permitiu a alguns conhecerem outras sonoridades, a outros passarem a tolerar outros sons e outros a passarem a fazer da música a sua profissão.

É com este estigma que a banda entra na sua primeira década de vida. No entanto, a sua sonoridade e imagem estavam esgotadas. Perante isto, recorrem de novo à música de combate, com letras mais intervencionistas, com enfoque na luta de classes, criticando o governo de então. Os concertos voltam a ser negros, bem puxados, com um punhado de músicas mais fortes, um cenário cuidado, em que focos vermelhos passam a rasgar a escuridão do palco. Curioso facto é, nesta fase, os êxitos radiofónicos da década anterior serem tocados constantemente, demonstrando a banda estar preparada para agradar a todos os públicos. Entretanto, os elementos do grupo passam a pertencer a outros projetos e aqui sobressaem as qualidades pessoais dos elementos dos Xutos e Pontapés, mais carismáticos. O pavilhão Atlântico em 1999 demonstrou que os Xutos e Pontapés eram a primeira super banda portuguesa. Tinham vinte anos de carreira e preparavam-se para prolongar o seu estatuto por mais anos.

Conforme escrevi em agosto deste ano, tive oportunidade de os ver ao vivo durante o verão. Pela enésima vez, é certo. Em família, sem esperar nada em concreto, além do concerto. O entusiasmo levou-me a cantar, saltar e a ficar arrepiado ao ouvir o tema “remar, remar”. Antes do final, Zé Pedro ficou no palco a interagir com o público. Atirava palhetas, umas dezenas à esquerda, ao centro e à direita. O baterista, o multifacetado e carismático Kalu, ficou ali com ele, minuto após minuto, enquanto o público pedia o segundo encore. A música foi retomada e Zé Pedro ficou na mesma, em contacto com a assistência, retribuindo toda a simpatia, com aquela pose de rocker.       

Provavelmente fiquei com a melhor das imagens de Zé Pedro: o palco, a relação de proximidade com os fãs e os gestos simpáticos.

Com ele, enquanto difusor de música na rádio, aprendi a ouvir as bandas mais novas, percebendo que a música rock, não teve décadas, nem se compartimenta em anos. E que podemos estar sempre preparados para ouvir dentro dos géneros musicais, umas alterações e novidades sonoras que nos deixam surpreendidos. Mesmo depois de passar trinta e muitos anos a ouvir rock.

 

(a publicar no dia 07/12/17)