O pouco dinheiro na carteira obrigou Iuri a ir a casa. Saiu do café, decidido a voltar para festejar o feito da selecção do seu país, a passagem aos quartos de final do Campeonato do Mundo.
Entrou em casa e por hábito fechou a porta. Não estava ninguém, os outros Ucranianos que dividiam a casa com ele, trabalhavam em turnos e só chegariam tarde.
Abastecido de economias, engoliu um copo de aguardente poderosa e preparava-se para voltar ao café. A noite ia ser longa. Iuri estava feliz, muito feliz. O seu pobre país estava na elite do futebol mundial, vitória por pénaltis sobre a rica Suíça.
Antes de sair Iuri precisa de ir à casa de banho. Nesse momento tocam à campainha. Iuri tenta despachar-se. Novo toque à campainha. Iuri sai da casa de banho e dirige-se para a porta. Batem à porta com força. Três toques, tipo murros. Começam a gritar no patamar. Iuri não percebe quem é e pensa tratar-se de outros compatriotas mais bebidos do que ele. Só pensa no barulho que deve incomodar os vizinhos, em especial o do lado, que é nem mais nem menos do que o senhorio.
Corre para abrir e depara-se com um polícia. Tenta explicar-lhe o atraso mas, o polícia não lhe permite. Só percebe as palavras: documentos, bandeira, Ucrânia e multa. Iuri tem dificuldade em perceber o que o polícia está a dizer-lhe, quase a berrar-lhe. Começa a ficar preocupado. Pede desculpa ao polícia e tenta falar. Nisto o senhorio abre a porta. Vê o polícia alvoroçado e Iuri em dificuldades e intervêm: Sr. Guarda que modos são esses, a esta hora da noite?
O Polícia irritado atira, “O senhor não se meta. Isto é entre mim e aqui o Shevchenco”. Iuri percebeu. O senhorio não gostou, “Vamos lá ver, este prédio é meu. Esse homem chama-se Iuri é meu inclino, vive com mais três ucranianos, pagam-me a renda mensalmente, no dia combinado. Além disso, sei que são bons trabalhadores, porque conheço bem os seus empregadores, todos eles meus amigos. Afinal o que esse homem fez, para o deixar tão irritado?”, perguntou. O homem da farda, ouvindo um tom calmo, serenou: “Segundo a lei a bandeira nacional, quando desfraldada simultaneamente com outras bandeiras de outros países, não poderá ter dimensões inferiores às destas”. O senhorio não conseguia acreditar, perguntou logo, que raio de lei é essa? Com um ar triunfal o polícia respondeu “Decreto - Lei n.º 150-87, de 30 de Março, aprovada em Conselho de Ministros liderado por Cavaco Silva e promulgada pelo Presidente da República, Mário Soares”. O inquilino não percebia muito bem a conversa, mas o tom era mais sereno e esperava que o senhorio resolvesse a questão.
Ao senhorio, por seu lado, a questão continuava sem ser entendida: - Ó senhor Polícia diga-me então como é que o Iuri não está a cumprir esse decreto?
- Com muito gosto, lá fora estão exposta duas bandeiras, a de Portugal e a do país aqui do Iuri.
- Certo. E isso viola o seu decreto de lei?
- Claro. A bandeira de Portugal é mais pequena do que a outra.
Aparvalhado, o pobre senhorio não queria acreditar. “Ó homem, a bandeira Nacional é minha, com muito gosto e a da Ucrânia é destes desgraçados. Estão lado a lado, sim senhor e digo-lhe mais, a de Portugal está em minha casa e a deles na casa alugada e garanto-lhe que eles pediram-me autorização.”
- Estou a ver mas, pelo que diz o decreto, não se pode hastear uma bandeira estrangeira em território nacional sem colocar a bandeira de Portugal.
O senhorio não queria acreditar no excesso de zelo do polícia. Tentou uma abordagem nova: O senhor deve ter familiares no estrangeiro, talvez em França ou na Suíça, não é? Se falou com eles ontem ou hoje certamente que lhe contaram maravilhas sobre os festejos da vitória da nossa selecção. Todos nós vimos como os Campos Elísios se encheram de Portugueses. Não houve problemas com os Franceses, não foi?
O polícia estava na expectativa, tinha o bloco e a caneta na mão e lá acabou por dizer que tinha tios e primos em França.
O senhorio continuou: “O senhor já ouviu falar da Lei do Ruído? É de 2001, penso eu. Garanto-lhe que foi aprovada em Conselho de Ministros liderado por António Guterres e promulgada pelo Presidente da República, Jorge Sampaio. Ontem os festejos foram mais ruidosos. Ninguém se incomodou, porque a alegria era imensa.” Sem parar continuou: “aqui o Iuri festeja de forma diferente, não tem carro, não pode andar às voltas a buzinar. Vai até ao café, beber umas bebidas fortes, conversar e recordar o seu país com os compatriotas dele. Esperar pelos colegas que estão a trabalhar e quando o café fechar, voltam para casa ordeiramente e se calhar, a cambalear.”
Disfarçadamente o polícia guardou o bloco. O senhorio vendo o gesto, enalteceu a atitude do polícia “pois fique sabendo, que conheço o seu comandante e quando estiver com ele vou dar-lhe os meus parabéns pelo seu excelente gesto patriótico”.
Entrou em casa e a esposa perguntou-lhe o que se tinha passado com os Ucranianos. “Nada. Coitados. Excesso de autoridade, sabes? Esta gente esquece-se o que os nossos emigrantes passaram lá fora”. E ficou a pensar como seriam os festejos face a um apuramento de Angola.
O Iuri ainda atordoado, lá foi. Fartou-se de beber, o café fechou bem mais tarde nesse dia, porque o stock de bagaço e aguardente terminou. A tempo, para descanso do dono.
Na manhã seguinte, Iuri levantou-se e foi trabalhar.