quarta-feira, outubro 29, 2008

Mediáticos

            A hipotética candidatura de Pedro Santana Lopes à Câmara Municipal de Lisboa não deixou ninguém indiferente. Alguns assustaram-se e reagiram com indignação. Outros amedrontaram-se e pensaram logo em coligações. Houve quem sorrisse, uns por escárnio, outros por satisfação.

            Independentemente do fôlego político do presumível candidato, o anúncio - utilizando a velha técnica de difusão de informações, o boato - abriu a campanha política para as eleições autárquicas de Outubro de 2009.

            Um pouco por todo o país, surgem informações sobre várias candidaturas a outras autarquias, demonstrando-se com isto, a apetência dos demais candidatos pela mediatização pessoal.

            De nada serve às direcções nacionais dos partidos tentarem, de alguma forma, coordenar as escolhas e eventuais candidaturas para cada concelho. Com uma voraz ansiedade são apresentados e votados nomes, ora pela concelhia, ora pela respectiva distrital, mesmo sabendo-se que nalguns casos essa escolha é da responsabilidade do líder do partido, ou então, está delegada num elemento da direcção nacional, como é o caso do PSD.

            Nesta perspectiva, a tarefa destinada a Castro Almeida (como vice-presidente do PSD) não se apresenta nada fácil. Tendo que esgrimir argumentos e equilibrar várias sensibilidades de um partido extremamente dividido, pouco tempo lhe restará para seguir os dossiers da política local, em especial, os assuntos apresentados na campanha eleitoral de há quatro anos e que tardam a ser resolvidos, além do particularmente inacessível encerramento da urgência hospitalar.

            Pela actual conjuntura política nacional, coloca-se como certa a sua recandidatura à autarquia local. Os elogios recebidos e o visível trabalho efectuado à frente da Câmara Municipal de S. João da Madeira, permitem-lhe encarar a reeleição sem qualquer problema.

            Tudo será imprevisível, caso a oposição política local se decida a disputar as eleições pensando em vitória.

            Pensar em vitória significa apresentar a candidatura de uma pessoa mediática. Um rosto bastante conhecido do público local. Para agradar ao eleitorado, a opção deve ter um efeito de surpresa e recair numa celebridade.

            Uma cara bastante conhecida da televisão, tal como o PSD inventou Francisco Moita Flores para autarca de Santarém ou aproveitou Fernando Seara para a Câmara Municipal de Sintra.

            Uma figura nacional representativa da diáspora sanjoanense.

            Com estas características, acrescentando-se tratar-se de um nome, que várias vezes foi capa de imensas revistas, o leitor terá feito o exercício de triagem de várias personalidades e eleito o nome de Bárbara Guimarães, certamente.

            Uma candidata que expele simpatia, sobejamente conhecida, que não perderia tempo a dar-se a conhecer.

            Em 2005, no apoio à campanha eleitoral para a Câmara Municipal de Lisboa, Bárbara Guimarães surpreendeu pela facilidade nos contactos com a população e mostrou uma proximidade com os eleitores até aí desconhecida.

            Com uma candidata tão mediática, as eleições em S. João da Madeira passariam a estar debaixo das atenções nacionais, o que se repercutiria em reportagens televisivas ou de outros órgãos de comunicação social. Isto seria do agrado do eleitorado local, que veria com bons olhos a projecção da cidade por todo o país.

            Pela experiência profissional de Bárbara Guimarães, a sua envolvência no mundo do espectáculo e das artes, S. João da Madeira ganharia numa fase imediata em animação e atracção.

            O desenvolvimento cultural de S. João da Madeira poderia ser finalmente conseguido e não passar de uma promessa adiada e com isso introduzir-se uma modernização no pensamento da sociedade local.

            Terá este desafio cabimento na vida desta ilustre sanjoanense?

 

(a publicar no dia 30/10/08)

                         

quarta-feira, outubro 22, 2008

Prazeres de Outono

Retiro o segundo pé do chão e hop, sustento-me em cima da balança. No visor analógico, aparecem números há muito esquecidos. Ajeito melhor os pés, inclino de novo a cabeça, não há dúvidas, emagreci.

O meu peso actual afasta-me de ser considerado uma pessoa de peso excessivo, segundo o cálculo do índice de massa corporal e das categorias associadas.

Resultado de uma acção (ou princípio) na refeição que escrupulosamente tento cumprir: não repetir.

A esta restrição diária, com dias de trabalho, por vezes, bastante agitados, procuro nos dias amenos e solarengos de fim-de-semana aproveitar para promover passeios pedestres familiares. Um dos melhores prazeres desta estação.

O destino actual, enquanto a meteorologia o permitir, são os caminhos que limitam as águas da ria de Aveiro. Nas margens do seu estuário, uma diversidade de aves resiste à toxicidade, que impede a apanha de bivalves.

A observação ornitológica ganha contornos de programa familiar. O conhecimento aumenta e através dos binóculos aprende-se a distinguir várias espécies. O fascínio pela aves de rapina e especificamente pelas sagradas águias, são agora acompanhadas pela observação de flamingos, garças, cegonhas e pequenas aves limícolas, como a narceja (na foto), cujo nome surpreendentemente me foi assegurado pelo meu filho, agora com sete anos.

A felicidade de viver próximo de rotas migratórias permite seguir voos de patos, ou vê-los sossegados às centenas, a salvo de qualquer espingarda de mira afinada, devidamente protegidos dentro da reserva natural de S. Jacinto.

Tudo muda com condições climatéricas adversas. Com frio e dias de chuva, o corpo recolhe-se e surgem opções mais caseiras. Em resumo, petiscar e molengar.

Como estou um pouco afastado do limite máximo do índice de massa corporal da categoria saudável, posso encarar o Outono sem restringir a ingestão de alimentos hiper-calóricos típicos desta época do ano.

Os meus prazeres gastronómicos são pequenos e não incluem pratos especiais, nem típicos, nem tão pouco característicos. Ao profiláctico mel que me vai permitindo manter os níveis de saúde em estado razoável, acrescento algumas das preferências: o leite-creme queimado na hora; as enfarruscadas castanhas assadas devidamente encartuchadas; fatias de broa de milho, torradas, devidamente barradas com manteiga (ou derivados com menor índice de gordura); ou a sêmea (a eleita é a da padaria da rua de casa dos meus pais); tabletes de chocolate comidas à dentada; um doce que aprendi a apreciar na Beira Alta, nas cercanias das terras do Conde de Videmonte, doce de abóbora com requeijão. Tudo em doses apropriadas e se a ocasião o proporcionar. Em alguns serões opto por um copinho de Favaios, ou pelo néctar das encostas do Douro num pequeno cálice.

A possibilidade de praticar o direito à preguiça é que infelizmente me é vedada. Se nos dias quentes de verão, adoraria passar uma manhã de um dia de trabalho, junto ao mar, agora, numa destas tardes curtas e cinzentas, que se advinham sobretudo húmidas, gostaria de permanecer em casa optando por uma das várias actividades de lazer: ouvir discos antigos ou actuais; fazer zapping aleatório, à espera de algo que prenda a atenção num canal televisivo; sintonizar uma rádio, de preferência via internet; navegar pela blogada, deixando comentários ocasionais; decidindo-me pela leitura de um dos livros que aguardam vez na prateleira, ou pela escrita de um texto não tão “light” como este, com ideias mais calóricas. Para qualquer uma destas escolhas, o sofá da sala é sempre o melhor suporte.

Como essas tardes vão demorar muito a chegar, aproveito o melhor que posso os tempos livres, ou seja, o serão familiar, por vezes, já aquecido pelo fogo envidraçado.

Já nos fins-de-semana, espero que as condições climatéricas durante as horas de brilho solar sejam favoráveis ao passeio pedestre, senão, inventa-se outra actividade, em família.

(a publicar no dia 23/10/08)

quarta-feira, outubro 15, 2008

Bem-vindo ao norte

A obra literária de Teixeira de Pascoaes é eterna. Este escritor de Amarante, poeta do Saudosismo, foi marginalizado pelo seu ideal nacionalista. Incompreendido pelos seus contemporâneos, que o acusavam entre outras coisas de utópico e passadista, o pensamento de Pascoaes atravessou o século passado e é hoje reconhecidamente um importante legado na percepção de quem somos e para onde vamos.

A retórica romântica, saudosista e sebastianista da utopia de Teixeira Pascoaes irrompeu devido à realidade humilhante e traumatizante existente em Portugal no período Oitocentista, após o ultimato Inglês.

Independentemente do esoterismo e misticismo incluídos na filosofia da saudade, Teixeira de Pascoaes criando a sua doutrina político-social (designadamente em “Arte de Ser Português”), observou detalhadamente as características do povo Português, sendo certo que quase um século depois, muitos conceitos descritos nas qualidades e defeitos da “Alma Pátria” perduram na nossa especificidade.

Na história das “Cortes” Portuguesas, peculiares desde a Fundação “pelo belo espírito de independência política” da intervenção do povo junto do Rei, limitando inclusivamente a sua acção, o escritor do Tâmega encontrou o suporte para contrapor à ideia de Estado centralizador, muito omnipresente (e omnipotente por influência francesa), o conceito do Município. Esperava Teixeira de Pascoaes, que o município fosse mais abrangente do que paróquias e freguesias; entre a família e a Pátria não existissem intermediários na forma de “partidos, facções, clientelas, etc.”; idealizou ainda o governo municipal, com a reunião desses governos a formar as “Cortes”, ou seja, o Estado.

Enganou-se, neste capítulo. Além disso, não previu que os Municípios fossem vitimas dos tais defeitos característicos do povo português, que segundo Pascoaes são: falta de persistência; vil tristeza; inveja; vaidade susceptível; intolerância; espírito de imitação.

Na prática poderíamos exemplificar cada um destes defeitos, pela seguinte correspondência: inúmeros projectos municipais esquecidos, num silêncio absoluto; abandono de áreas municipais ao estado decrépito; municípios correndo pelo investimento público, pela abertura de uma qualquer delegação do Estado, muitas vezes apenas para ultrapassar o concelho vizinho; o endividamento autárquico, nalguns casos problemático; assessores para tudo e mais alguma coisa ou empresas municipais constituídas com administradores a serem pagos principescamente, com activos a desvalorizarem constantemente e sendo a facturação inferior aos gastos dessas empresas; finalmente, a construção de quiosques ou cafés modernos em espaços públicos, ou de parques infantis com piso seguro, redes de ciclovias, ou o trânsito condicionado por rotundas e separadores são alguns dos exemplos das opções de algumas autarquias, que imitando o vizinho primam pela quantidade e pela extensão, ou então pela suposta qualidade superior.

Um século depois das palavras do referido escritor, vemos que a prática dos agentes do “município”, salvaguardada pela hipótese de substituição inerente aos regimes democráticos, reduziu quase tudo à lógica do feudalismo.

Apesar da melhoria significativa da qualidade de vida dos munícipes, o desenvolvimento estrutural do país não pode continuar dentro da lógica actual.

Uma nova entidade deveria surgir entre o Município e a Pátria.

As regiões poderão ser esse factor de desenvolvimento estrutural, sem qualquer perigo para o País, apesar de a Europa ser cada vez mais adepta da desagregação de Estados.

Sem querer seguir o texto pela enumeração de novos e inesperados adeptos da regionalização, nem pelo elogio à reorganização de vários Ministérios, de acordo com um mapa comum, sinto que a criação e aumento de competências das áreas metropolitanas das duas principais cidades do país e a forte unidade regional existente no sul do país, permitem encarar o desafio da regionalização de modo diferente da referendada e consequentemente derrotada “divisão” administrativa do país, proposta há dez anos.

Veja-se, como exemplo da nova sensibilidade para a regionalização, como o bairrismo sanjoanense tem sido substituído pelo orgulho de pertencer à Área Metropolitana do Porto.

Na Assembleia da República na semana passada arriscou-se discutir um assunto extra ao programa do partido que forma Governo.

De fora da sessão legislativa e do programa do actual Governo ficará a regionalização. Para as eleições de 2009 deverá constar do programa eleitoral de quase todos os partidos com assento parlamentar.

Quero tornar claro que no supracitado referendo votei duplamente não, em resposta àquelas perguntas disparatadas colocadas no boletim eleitoral. Para não ser mal interpretado por qualquer leitor mal intencionado sobre a minha vontade, se a regionalização voltar a ser apresentada de igual modo em próximo referendo, continuarei a votar não, embora reconheça vantagens competitivas na criação de regiões. Espero, contudo, que as designações futuras das regiões a criar no norte e centro do país, saiam da lógica actual e se enquadrem nos valores locais, tal como existe a sul: Algarve e Alentejo.



(a publicar no dia 16/10/08)

quarta-feira, outubro 08, 2008

Madrid

            As viagens ao abrigo de negócios têm um inconveniente, não controlamos o nosso tempo. A hora do voo de regresso condiciona o tempo que resta livre e por vezes, vemo-nos e desejamo-nos fazendo horas nos aeroportos para o início do check-in, ou por vezes em zonas pouco nobres de cidades cosmopolitas, acercadas do nosso imediato destino final.

            Em Madrid não foi assim.

            Após duas noites mal dormidas, com boa mesa e companhia animada, a actividade proposta terminava no final de uma tarde. O voo era apenas à noite e sobravam um par de horas, que nos permitiria aproximarmo-nos do centro da cidade. Oportunidade para uns comprarem as lembranças para familiares, outros para ver o pulsar de uma cidade.

            Numa qualquer rua, cujo nome nunca soube, perdi o meu olhar pelos transeuntes. Uma sensação fantástica de ver passar carros, pessoas, num dia abafado de Maio, ainda que encoberto.

            Na minha contemplação senti-me observado. Mirando em redor, vi um rosto sublime, com uns olhos igualmente belos a fixar-me. Uma elegante rapariga, bem vestida, não desviou o olhar e eu por uma única vez, perdi a vergonha, continuei a apreciá-la. Sorri, num sorriso meio tímido, sem saber se seria correspondido. A elegância da minha observadora transbordou com um belo sorriso, que faria perder o controlo a qualquer um.

            Afastados uns passos no passeio, eu encostado ao edifício, ela na beira do passeio, esperando um táxi. Uma curta distância separando duas vidas. O objecto esperado aproximava-se. Teria que decidir. Dava os passos, entrava no táxi, ou então, impedia-a de entrar, de forma educada e cortês. Ou pelo contrário, ficaria onde estava e sonharia.

            A decisão teria de ser rápida, tinha que ponderar entre a desconhecida, a aventura, o permanecer na grande cidade, o perder o avião e faltar ao trabalho nos dias seguintes e do outro lado da balança, o regresso à vidinha cumpridora e monótona. A prudência aconselhava ponderar a possibilidade de desilusão pela incerteza do momento.

            O táxi parou. A porta abriu-se. Um último olhar entre dois seres cruzou aquele passeio. Um novo sorriso. O corpo elegante desapareceu no interior do automóvel. A porta fechou-se e o carro arrancou logo. Não tive tempo para ver se a cabeça ainda se voltou. Outros carros taparam-me a visão.

            Uma voz chamou-me à realidade. “Pensei que perderia o avião!” – disseram-me. Acrescentando, “muito gira”.

            Uma mútua e sonora gargalhada, pôs uma pedra no assunto.

A vida por vezes, resume-se aos sonhos.

 

(texto a publicar (?) no dia 9/10/08)

 

quarta-feira, outubro 01, 2008

Piano

            O telefone tocou na oficina do departamento de manutenção. Bernardo por se encontrar mais perto, atendeu educadamente. Do outro lado da linha, o Sr. Ferreira, responsável pela área administrativa e financeira da empresa, solicitava um técnico para reparação da máquina fotocopiadora. Transmitido o recado à chefia, Bernardo ouviu um imediato “vai tu”. Acrescido do paternalista “se tiveres dificuldades chama”.

            Era a primeira vez que Bernardo era chamado a reparar uma máquina fora da área de produção. Pelo sim, pelo não, precaveu-se levando consigo um jogo de chaves e o indispensável multímetro. Dirigiu-se à área administrativa e ao atravessar o longo salão para alcançar a sala em que estava instalada a máquina avariada, avistou um piano. Estremeceu.   Aproximou-se do bonito instrumento de cauda, castanho-escuro e não resistiu a abrir a tampa. Olhou em redor, só então pensou na maçada que seria ser repreendido por ter ousado mexer no piano. Não viu ninguém. A sua mão direita aproximou-se do teclado. O polegar posicionou-se na tecla branca atrás de duas teclas pretas e desceu suavemente. Um dó cristalino ecoou pela sala. Emocionado, fez uma pausa e repetiu. Desta vez com os restantes dedos da mão direita a seguirem a escala das notas musicais até à nota sol. Indicador, médio, anelar e mindinho. Com o mindinho levantado, desceu-o de novo e invertendo a sequência na escala tocou: sol, fá, mi, ré, dó. Para cada nota musical, um dedo. Estava pronto para repetir, só que ouviu uma porta a abrir-se e parou, fechando a tampa do teclado do piano.

            Caminhou para a sala, em que sabia estar a fotocopiadora. Ao entrar cumprimentou os presentes. O Sr. Ferreira apressadamente o informou sobre a necessidade do departamento de contabilidade de ter a máquina a trabalhar, dado estar em curso um processo delicadíssimo de fecho do mês. Bernardo ouviu, tentando perceber as palavras do Sr. Ferreira. Aproximou-se da máquina, ficando a sós com o responsável do departamento. Este explicou-lhe a avaria da máquina e prontamente deu o seu parecer pouco “técnico”, para resolução do mesmo. Bernardo ouviu, sem ripostar. Delicadamente optou por fazer o seu próprio diagnóstico, carregando nas teclas funcionais da máquina. As folhas saíam em branco. Procurou perceber o mecanismo da máquina, enquanto o Sr. Ferreira lhe assegurava tratar-se de um determinado componente. Bernardo fazia que não ouvia, concentrado no seu trabalho. Abriu as tampas laterais da máquina, não verificando qualquer obstrução. Percebeu que os sensores inseridos dentro do equipamento estavam funcionais e passou a analisar o problema na perspectiva mecânica. Entendeu o mecanismo da máquina e verificou estar uma pequena correia fora do seu lugar, o que impedia o deslocamento da célula de leitura. Nada disse ao Sr. Ferreira. Pegou nas chaves e deixando a tampa superior aberta, começou a tirar os parafusos que prendiam o vidro superior. O Sr. Ferreira quis impedi-lo. Bernardo explicou-se e sossegou o homem. Passado dois minutos a máquina estava funcional.

            No regresso à oficina, parou de novo junto ao piano. Levantou de novo a tampa do teclado. Voltou a colocar a mão direita sobre o teclado e com os cinco dedos percorreu a escala. Lembrou-se da sua infância, de uma melodia que aprendera ao piano, num exercício de iniciação. Dó, ré mi e depois mi, mi, mi. Mi, fá, sol e depois sol, sol, sol. Fá, mi, ré e depois ré, ré, ré. Mi, ré, dó e finalmente dó, dó, dó. Com esta sequência de acordes, que repetiu por mais duas vezes, os seus olhos encheram-se de lágrimas.

            Tocar piano, era voltar à infância. Era recordar os tempos em que a vida dos seus pais corria bem e lhe foi proporcionado o contacto e aulas de piano. Os problemas financeiros obrigaram a família a mudar de terra e a viver uma vida mais modesta. Infelizmente para ele, o ensino de piano ficou para trás. Bernardo adorava o piano, as aulas. Os pais não encontraram nenhuma solução para assegurar a continuação dos seus estudos musicais. Na nova morada, não havia nenhuma escola acessível, apenas professoras particulares, que não estavam ao alcance das posses dos pais. Recordar tudo isto fazia-o ficar triste. As oportunidades perdidas. A vida condicionada. O abandono escolar prematuro e o ingresso no mundo profissional, sempre com a ideia de progredir nos seus estudos em horário nocturno. O estudo do piano ficara irremediavelmente perdido.

            Nessa noite Bernardo não dormiu. Toda a noite pensou no piano. Fez planos para se aproximar dele, para lhe voltar a tocar. Lembrou-se dos seus livros de estudo de piano., arrumados numa caixa com os pertences da sua infância. Procurou-a nos armários, na arrecadação, até que finalmente a encontrou. Vasculhou o seu conteúdo. Ao encontrar um dos livros, deveriam estar ali dois mas, só encontrou um, abriu numa das páginas iniciais e ali viu as claves, uma para cada mão. As pautas, as notas impressas e seguindo por cada linha de referência, voltou a saber ler as notas. Continuou a folhear as páginas e a recordar as aulas do seu passado. Ver a música que em tempos estudara, que trauteara vezes sem conta, retirou-lhe qualquer cansaço nocturno.

            Na manhã seguinte, Bernardo aproveitou uma quebra no serviço para voltar para junto do piano. Voltou a tocar. Desta vez, uma escala completa e com as duas mãos. Apercebeu-se de barulho na contabilidade e rapidamente seguiu para junto da máquina de fotocopiar. Ao ver Bernardo naquela área, o Sr. Ferreira estranhou e questionou-o sobre a sua presença sem ser solicitada. Bernardo não precisou de pensar na desculpa a dar. Preparado, disse ter vindo verificar se a máquina estava em ordem, pois tinha ficado com medo de a correia não ter ficado no sítio. O chefe dos administrativos sorriu e acompanhou Bernardo até ao final do salão, não lhe dando hipótese de tocar de novo.

            Sábado, terminado o trabalho junto à produção, Bernardo decidiu aproximar-se do salão. Tinha verificado que não estava ninguém na contabilidade, nem nos restantes departamentos e com o livro da sua infância dentro da bata, para que ninguém o visse, seguiu para o seu destino, informando onde se encontraria. Ao abrir a porta de acesso ao salão, ficou estático. Nada. Não se via o piano. Olhou melhor. Ligou as lâmpadas, quebrando o lusco-fusco daquela sala grande e nada. O piano tinha sido retirado. Procurou nos compartimentos contíguos, olhou à procura de marcas no chão e realmente não via nada. O piano desaparecera.

            Voltou lívido para junto da produção e dali para a oficina. Disfarçou a sua frustração o melhor que pôde, quando era chamado para junto de uma máquina. Chegado a casa, pousou o livro em cima da mesa da cozinha. A esposa ao ver aquele livro que desconhecia e a má cara de Bernardo, ficou apreensiva. Ficou em silêncio e muito mais tarde perguntou-lhe para que queria ele um livro de música. Sem demoras, Bernardo respondeu: ainda vou a tempo de estudar piano.

 

(a publicar dia 02/10/08)