quarta-feira, outubro 01, 2008

Piano

            O telefone tocou na oficina do departamento de manutenção. Bernardo por se encontrar mais perto, atendeu educadamente. Do outro lado da linha, o Sr. Ferreira, responsável pela área administrativa e financeira da empresa, solicitava um técnico para reparação da máquina fotocopiadora. Transmitido o recado à chefia, Bernardo ouviu um imediato “vai tu”. Acrescido do paternalista “se tiveres dificuldades chama”.

            Era a primeira vez que Bernardo era chamado a reparar uma máquina fora da área de produção. Pelo sim, pelo não, precaveu-se levando consigo um jogo de chaves e o indispensável multímetro. Dirigiu-se à área administrativa e ao atravessar o longo salão para alcançar a sala em que estava instalada a máquina avariada, avistou um piano. Estremeceu.   Aproximou-se do bonito instrumento de cauda, castanho-escuro e não resistiu a abrir a tampa. Olhou em redor, só então pensou na maçada que seria ser repreendido por ter ousado mexer no piano. Não viu ninguém. A sua mão direita aproximou-se do teclado. O polegar posicionou-se na tecla branca atrás de duas teclas pretas e desceu suavemente. Um dó cristalino ecoou pela sala. Emocionado, fez uma pausa e repetiu. Desta vez com os restantes dedos da mão direita a seguirem a escala das notas musicais até à nota sol. Indicador, médio, anelar e mindinho. Com o mindinho levantado, desceu-o de novo e invertendo a sequência na escala tocou: sol, fá, mi, ré, dó. Para cada nota musical, um dedo. Estava pronto para repetir, só que ouviu uma porta a abrir-se e parou, fechando a tampa do teclado do piano.

            Caminhou para a sala, em que sabia estar a fotocopiadora. Ao entrar cumprimentou os presentes. O Sr. Ferreira apressadamente o informou sobre a necessidade do departamento de contabilidade de ter a máquina a trabalhar, dado estar em curso um processo delicadíssimo de fecho do mês. Bernardo ouviu, tentando perceber as palavras do Sr. Ferreira. Aproximou-se da máquina, ficando a sós com o responsável do departamento. Este explicou-lhe a avaria da máquina e prontamente deu o seu parecer pouco “técnico”, para resolução do mesmo. Bernardo ouviu, sem ripostar. Delicadamente optou por fazer o seu próprio diagnóstico, carregando nas teclas funcionais da máquina. As folhas saíam em branco. Procurou perceber o mecanismo da máquina, enquanto o Sr. Ferreira lhe assegurava tratar-se de um determinado componente. Bernardo fazia que não ouvia, concentrado no seu trabalho. Abriu as tampas laterais da máquina, não verificando qualquer obstrução. Percebeu que os sensores inseridos dentro do equipamento estavam funcionais e passou a analisar o problema na perspectiva mecânica. Entendeu o mecanismo da máquina e verificou estar uma pequena correia fora do seu lugar, o que impedia o deslocamento da célula de leitura. Nada disse ao Sr. Ferreira. Pegou nas chaves e deixando a tampa superior aberta, começou a tirar os parafusos que prendiam o vidro superior. O Sr. Ferreira quis impedi-lo. Bernardo explicou-se e sossegou o homem. Passado dois minutos a máquina estava funcional.

            No regresso à oficina, parou de novo junto ao piano. Levantou de novo a tampa do teclado. Voltou a colocar a mão direita sobre o teclado e com os cinco dedos percorreu a escala. Lembrou-se da sua infância, de uma melodia que aprendera ao piano, num exercício de iniciação. Dó, ré mi e depois mi, mi, mi. Mi, fá, sol e depois sol, sol, sol. Fá, mi, ré e depois ré, ré, ré. Mi, ré, dó e finalmente dó, dó, dó. Com esta sequência de acordes, que repetiu por mais duas vezes, os seus olhos encheram-se de lágrimas.

            Tocar piano, era voltar à infância. Era recordar os tempos em que a vida dos seus pais corria bem e lhe foi proporcionado o contacto e aulas de piano. Os problemas financeiros obrigaram a família a mudar de terra e a viver uma vida mais modesta. Infelizmente para ele, o ensino de piano ficou para trás. Bernardo adorava o piano, as aulas. Os pais não encontraram nenhuma solução para assegurar a continuação dos seus estudos musicais. Na nova morada, não havia nenhuma escola acessível, apenas professoras particulares, que não estavam ao alcance das posses dos pais. Recordar tudo isto fazia-o ficar triste. As oportunidades perdidas. A vida condicionada. O abandono escolar prematuro e o ingresso no mundo profissional, sempre com a ideia de progredir nos seus estudos em horário nocturno. O estudo do piano ficara irremediavelmente perdido.

            Nessa noite Bernardo não dormiu. Toda a noite pensou no piano. Fez planos para se aproximar dele, para lhe voltar a tocar. Lembrou-se dos seus livros de estudo de piano., arrumados numa caixa com os pertences da sua infância. Procurou-a nos armários, na arrecadação, até que finalmente a encontrou. Vasculhou o seu conteúdo. Ao encontrar um dos livros, deveriam estar ali dois mas, só encontrou um, abriu numa das páginas iniciais e ali viu as claves, uma para cada mão. As pautas, as notas impressas e seguindo por cada linha de referência, voltou a saber ler as notas. Continuou a folhear as páginas e a recordar as aulas do seu passado. Ver a música que em tempos estudara, que trauteara vezes sem conta, retirou-lhe qualquer cansaço nocturno.

            Na manhã seguinte, Bernardo aproveitou uma quebra no serviço para voltar para junto do piano. Voltou a tocar. Desta vez, uma escala completa e com as duas mãos. Apercebeu-se de barulho na contabilidade e rapidamente seguiu para junto da máquina de fotocopiar. Ao ver Bernardo naquela área, o Sr. Ferreira estranhou e questionou-o sobre a sua presença sem ser solicitada. Bernardo não precisou de pensar na desculpa a dar. Preparado, disse ter vindo verificar se a máquina estava em ordem, pois tinha ficado com medo de a correia não ter ficado no sítio. O chefe dos administrativos sorriu e acompanhou Bernardo até ao final do salão, não lhe dando hipótese de tocar de novo.

            Sábado, terminado o trabalho junto à produção, Bernardo decidiu aproximar-se do salão. Tinha verificado que não estava ninguém na contabilidade, nem nos restantes departamentos e com o livro da sua infância dentro da bata, para que ninguém o visse, seguiu para o seu destino, informando onde se encontraria. Ao abrir a porta de acesso ao salão, ficou estático. Nada. Não se via o piano. Olhou melhor. Ligou as lâmpadas, quebrando o lusco-fusco daquela sala grande e nada. O piano tinha sido retirado. Procurou nos compartimentos contíguos, olhou à procura de marcas no chão e realmente não via nada. O piano desaparecera.

            Voltou lívido para junto da produção e dali para a oficina. Disfarçou a sua frustração o melhor que pôde, quando era chamado para junto de uma máquina. Chegado a casa, pousou o livro em cima da mesa da cozinha. A esposa ao ver aquele livro que desconhecia e a má cara de Bernardo, ficou apreensiva. Ficou em silêncio e muito mais tarde perguntou-lhe para que queria ele um livro de música. Sem demoras, Bernardo respondeu: ainda vou a tempo de estudar piano.

 

(a publicar dia 02/10/08)

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