quarta-feira, novembro 05, 2008

Orquestra

Esta é a estória de Carlos, músico, tocador de tuba. Intérprete, vá lá. Membro de uma orquestra, por vocação e após longos anos de estudo. Um percurso difícil, trilhado a partir da infância, no momento em que interrompeu o sossego dos pais e proclamou a sentença futura: não quero mais aprender a tocar violino, prefiro tocar tuba.

Fez-se silêncio.

Os pais pediram-lhe que explicasse a nova escolha. Carlos, a medo, disse que preferia sons graves, que enchessem a sala. Os progenitores referiram vários instrumentos de sopro adjectivando-os. A beleza da flauta, o sublime clarinete, o enigmático oboé, o majestoso fagote, o triunfante trompete e de todos desdenhou Carlos. Os pais, entendidos em música, tentaram convencê-lo a tentar o sensual saxofone ou outros instrumentos de sonoridade grave, como o trombone e até as imponentes trompas. Sem efeito.

Carlos apreciava o som da tuba. Nos concertos a que assistia vibrava com o toque deste instrumento. Não muito dado ao esforço, verificava que nas grandes obras sinfónicas, a tuba tocava pouco, contudo, sobre isto nada disse aos pais. Estes lembraram-se de sugerir violoncelo, ou contrabaixo. Sim, contrabaixo, igualmente com um som grave, para Carlos seria mais fácil devido à analogia de instrumento de cordas. O filho já tinha pensado nisso, apreciava o som emitido, no entanto, o seu intimo sabia que encher os pulmões e conseguir tocar notas bem graves seria mais do seu agrado.

Tuba, quis rematar a conversa. O pai, que ia perdendo a paciência com a teimosia do filho, explicou-lhe as dificuldades possíveis em aprender a tocar o instrumento. Apesar disso, Carlos tinha a lição estudada e sabia que na Academia local era possível aprender, pois tinha já um professor e alguns alunos. A insistência final do pai, cedendo à vontade do filho, foi no sentido de o acautelar sobre o futuro como músico, dizendo-lhe que a partir de certa idade havia vontade de actuar mais em público, não apenas em audições de final de período mas, em projectos colectivos e sabia que não era fácil enquadrar uma tuba. “Daqui a uns anos, enquanto estudares no ensino secundário, as hipóteses de tocares em grupo será pertenceres à Filarmónica, interpretando músicas de um género diferente do que vais estudar, até porque aqui no concelho não vejo qualquer vontade em apoiar a criação de Orquestras”.

Os anos seguintes de Carlos passaram-se entre estudo de escalas e a sonhar estar em palco tocando os concertos de alguns compositores importantes, como Berlioz, Wagner e Bruckner, em especial os que integram solos de tubos. Aos dezasseis anos entrou para a banda filarmónica conforme o pai previra. O gosto pela música e a capacidade de execução do instrumento facilitaram-lhe o suporte harmónico, no entanto, passou a tocar de ouvido sem qualquer esforço de estudo ou de execução.

Não abandonou os estudos clássicos e percebeu os avisos recebidos do pai, ao escolher o seu instrumento. Não desistiu de entrar numa orquestra. Sofreu com o ostracismo dado pelo poder político aos músicos. Em idade de formação não lhes era atribuída nenhuma importância. Os seus colegas e amigos de desporto recebiam prémios e distinções, os melhores alunos da escola também. Para os músicos nada. O apoio dado à música em geral, pela autarquia, era no sentido de restauro de instalações e de promoção de concertos com músicos consagrados, oriundos de outros locais.

Carlos jamais desanimou. Prosseguiu os estudos superiores em música e no seu instrumento de eleição. Até que um dia conseguiu entrar numa orquestra de dimensão nacional. Um dia memorável, embora Carlos tivesse passado pelo embaraço que a seguir se relata.

Na sua estreia como novo membro, Carlos estava nervoso. A orquestra entrou em palco, os músicos com os seus instrumentos foram para as respectivas secções. Carlos colocou-se na parte de trás do palco, local reservado para os instrumentos de sopro, designados como metais. Atrás de si estavam os instrumentos de percussão, um pouco mais ao lado os restantes sopros, os instrumentos de madeira. Entre si e o maestro, vários colegas, cada qual com o seu arco, empunhavam violinos, os mais afastados de Carlos e mesmo à sua frente vários violoncelos e os seus colegas do contrabaixo.

Iniciado o concerto, o pensamento de Carlos fluiu, um mau hábito adquirido do tempo da adolescência. Olhava em redor, observando a magnificência da sala, completamente cheia. Reparava no público, nas suas caras de satisfação.

No tema inicial, a tuba não tocava. Chegou o momento de entrar em acção. Olhou para a pauta e reparou que a partitura estava vazia. Atrapalhou-se, não conseguindo assim tirar as folhas do local onde estavam arrumadas. O maestro fez sinal para iniciar o segundo tema. A tuba foi colocada ao colo e a boca aprontou-se. Seriam uns acordes e até tocar de novo, retiraria a pauta e colocava-a aberta na partitura.

Toda esta trapalhice, desconcentrou o músico que tocou várias notas completamente erróneas. Apesar da má cara do maestro, os restantes músicos prosseguiram a execução da melodia. Todos não, os do contrabaixo ficaram a rir-se e não se conseguiam concentrar. Ao lado de Carlos, os tocadores de trompas estavam mais que divertidos e riam-se também. O riso de uns contagiou os outros e em certo momento, o maestro vendo que só os violinos o seguiam deu por finalizada a música.

O público sem se aperceber do sucedido bateu palmas. Os mais melómanos não sabiam como reagir. Carlos extremamente transpirado colocou a pauta no sítio, pediu desculpa ao maestro, esperou que as palmas finalizassem e que os seus colegas parassem de rir.

Com alguma naturalidade, o maestro dirigiu-se ao público explicando que retomariam o concerto, mal terminasse o ataque de riso dos membros da orquestra, lembrando-se de uma história apropriada com outra orquestra, que culminou num concerto a todos os níveis brilhantes.

Compostos todos músicos, escusado será relatar o memorável concerto ouvido pela assistência.

(a publicar dia 06/11/08)

Sem comentários: