Na estante onde arrumo os livros, tenho uma pequena secção para os livros novos. Por vezes, crio uma pequena fila de espera, acumulando alguns títulos. A ordem de leitura não segue obrigatoriamente a sequência de chegada e por vezes, livros permanecem mais tempo do que o que merecem, à espera de serem lidos.
A presença em S. João da Madeira do escritor Valter Hugo Mãe, em outubro passado, permitiu-me tirar dessa prateleira um livro sem qualquer página lida, intacto, com o objectivo de recolher uma assinatura do autor e assim, acrescentar valor a um exemplar de uma das edições de “O apocalipse dos trabalhadores”.
Este não foi o principal motivo da minha presença na referida apresentação, obviamente. Pretendia conhecer melhor o escritor, a sua obra, antes de a ler. Uma oportunidade que nem sempre surge. Perceber as motivações para a escrita, a forma como se constroem os personagens de romances, tudo em discurso directo.
Durante a conversa, noticiada nas páginas deste jornal, o escritor contou uma curiosa cena do quotidiano da povoação na qual habita, as Caxinas, ali entre Vila de Conde e a Póvoa de Varzim. Utilizando palavras semelhantes às que se seguem, Valter Hugo Mãe referiu os constantes actos de solidariedade entre as vareiras, quase todas asmáticas, que esquecendo-se dos seus ventiladores para atacar a maleita, pediam um emprestado na rua à primeira conhecida que passasse. Recebendo em troca, além da salvação, os conselhos apropriados de quem já passou pelo mesmo, sentindo a morte tão perto.
Eu, asmático, não deixei de me rever no desespero das varinas. Em particular por ter num dos bolsos do casaco o meu ventilador, conhecido pelos doentes de asma, por bomba. Uma precaução motivada por uma sucessão de alergias, provocadas pelo contacto com uma série de reagentes: mudança de clima, presença de ácaros e o pêlo de animais, etc..
Não foi só estar com o objecto, que me fez sorrir. O relato do dia-a-dia vareiro era semelhante a um daqueles dias terríveis, para qualquer asmático: estar bem, sair de casa desprevenido, sem qualquer ventilador e passado um pouco, derivado ao contacto com um qualquer factor alérgico, começar a complicar a oxigenação do corpo.
Não é costume andar “armado” com a bomba no bolso. Em geral, fica em casa. Por vezes, vejo-me obrigado a regressar aceleradamente a casa, para uma inalação salvadora. Outras vezes, tento uma farmácia. Ser conhecido como doente crónico, permite-me comprar o inalador, sem qualquer questão. Nos locais em que não me conhecem, vendo o estado em que me encontro, não criam obstáculos. Várias vezes, enquanto espero pela emissão do recibo, já a caixa está aberta e o ventilador na mão. Não por desconfiança mas, para uso imediato. Se se atrasam um pouco, já o ventilador sai da farmácia com uma dose a menos e com a dilatação dos brônquios efectuada, devido à intervenção da substância química salbutamol. Um alívio imediato a 1,8 cêntimos de euro por cada inalação, caso não seja comparticipada.
Uma dependência, que apesar de vários tratamentos alternativos, não consigo deixar.
Já fiz contas. Até hoje devo ter usado trezentos inaladores da marca mais conhecida dos asmáticos, o que equivale a sessenta mil doses para eliminação do sopro interno, semelhante aos dos pequenos felinos. Todos estes números serão aumentados, consoante a minha longevidade. Caso duplique a minha idade actual, poderei atingir as cem mil doses.
Por agora, vou regressar à leitura. Precisamente a Valter Hugo Mãe. O livro referido anteriormente ficou logo lido, nos dias seguintes à apresentação, tal foi a impressão deixada. Na fila de espera ficou um outro título do mesmo autor. Um livro que o projectou como escritor, permitindo-lhe vencer o prémio José Saramago em 2007. O seu título é “o remorso de Baltazar Serapião”.
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