Num calmo e tranquilo serão de um dia de semana, Ana Maravilha encontrava-se na sala do seu apartamento envolvida na leitura de um livro. O seu filho dormia no respectivo quarto. Nessas horas disponíveis, até o sono se apoderar dela, Ana optava por ler. Em algumas noites, em especial se tinha terminado um livro e fazia uma pausa antes de iniciar um novo, Ana dedicava-se ao computador. As novas redes sociais entusiasmavam-na. Trocava mensagens com amigas e amigos, por vezes perdia-se na internet, em qualquer pesquisa apropriada à sua vida. Raramente via televisão, a menos se soubesse da emissão de alguma série ou filme imperdível.
Estava Ana disposta a terminar um livro de trezentas páginas nessa noite. Faltavam-lhe cerca de setenta para o final. O enredo tinha-a envolvido e agora, com um pequeno esforço, encerrava aquele volume. No seu lar reinava um silêncio sepulcral. Ouvia-se o virar de uma página de quando em quando e alguns ruídos do prédio produzidos pela vizinhança. Umas vezes a movimentação de elevadores, por outras o abrir ou fechar de portas, ou alguma conversa oriunda das áreas comuns do prédio, considerava Ana, que não se preocupava em saber donde provinham esses diálogos. Do exterior ouvia-se a passagem de automóveis, o tossir de algum transeunte, o diálogo mais eufórico de algum grupo. Nesse momento, Ana ouviu o bater da porta de um carro, outro som comum, escutou melhor para saber se tal automóvel tinha estacionado ou se iria arrancar. A sua preferência era sempre para paragem, um ruído isolado, em contraste com o iniciar de marcha, que alguns condutores cismavam em produzir elevados decibéis.
A necessidade de Ana em retomar em silêncio as suas leituras, para conseguir a desejada concentração, foi interrompida pelo toque do seu telemóvel. Pousou o seu livro em cima do sofá e foi a correr atender, para que o toque do aparelho não acordasse o seu filho. Quem seria àquela hora? Quando olhou para o visor, viu o nome de Beto. Interrogou-se sobre o que se passaria? Atendeu, para evitar o barulho em casa. Olá Beto – exclamou.
Beto Rouquinho, Alberto de baptismo. Amigo de Ana há muitos anos. Colegas de turma desde os primeiros anos de estudo. No final do secundário, cada um tinha seguido a sua vida. Beto casara e fora para longe. Ana oficialmente não casara e ficou na terra natal. Mantiveram a relação de amizade ao longo dos anos. Beto, enquanto os pais foram vivos, aparecia ao fim de semana e nas férias. Depois tudo se alterou, a família Rouquinho deixou de ter moradia por aquela localidade e Beto, só aparecia em casamentos, baptizados e funerais. Agora raramente se encontravam. Utilizavam os novos meios para comunicar. Trocavam sms pelo Natal, Passagem de Ano, ou nos respectivos aniversários. Além destas efemérides, um ou outro mail esporádico. Os telefonemas eram iniciativa de Beto Rouquinho e Ana Maravilha nunca deixara de atender. Passada a fase das cerimónias religiosas, os raros encontros aconteciam em reuniões de antigos colegas de turma. Amigos comuns promoviam convívios, com periodicidade incerta e Beto aparecia sempre. Sozinho. Ana, por sua vez, raramente comparecia. No dia a seguir a cada ausência, Beto telefonava-lhe. Desta forma, ficou a saber da separação dela e de outros episódios da sua vida. “Merecias melhor” – dizia-lhe Beto.
Olá Ana. Ainda moras no mesmo prédio? - perguntou Beto. Ana respondeu afirmativamente, pensando que Beto estaria a actualizar algum ficheiro de moradas de antigo colegas. Beto perguntou-lhe qual é o andar. Com a resposta de Ana, ouviu-se a campainha de casa a tocar. Ana assustou-se. Pensou no filho e disse – Beto, espera um pouco, tenho o meu filho a dormir e estão a tocar-me à porta, curiosamente. Vou ver quem é… Sorrindo, embora Ana não visse, Beto exclamou: Sou eu Ana. Estou cá em baixo.
Efectivamente, no vídeo-porteiro via-se a sua silhueta. Ana expressou o seu espanto e carregou no botão abrindo a porta do prédio, dando permissão a Beto para subir. Ficou intrigada com o aparecimento do amigo. Podia ter vindo assistir a algum funeral. Assistir ou participar, interrogou-se. Enquanto Beto não subia, certamente à espera do elevador, Ana fechou a porta do quarto do filho. Acendeu as luzes da entrada do seu apartamento e as da sala, lia sempre com pouca luz. Foi esconder o livro, que tinha ficado aberto. Ana tinha o estranho hábito de esconder os livros que andava a ler. Quando os terminava, não os ostentava, nem debatia com os amigos os aspectos da obra. O medo de ouvir uma informação prematura, uma depreciação ou o seu contrário, fazia com que Ana nada dissesse sobre os seus livros em estado de leitura. No final de cada, participava em fóruns de debate, como anónima, trocando várias impressões sobre o que acabara de ler, ou pormenores sobre o autor do livro.
(a publicar dia 21/01/10)
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