terça-feira, setembro 14, 2010

Canaviais

            Vinte minutos depois da hora marcada, o grupo arrancou. O aviso prévio foi esclarecedor: o percurso proposto não seria totalmente cumprido, era demasiado extenso e haveria demasiadas paragens, pelo que seria preferível perfazer um quarto do trajecto e assim cumprir o horário. Explicações aceites, a marcha iniciou-se. Os elementos do grupo apreciavam os equipamentos fornecidos pela organização. Testavam as suas capacidades e olhavam de soslaio para os objectos pessoais de alguns dos participantes. Duzentos metros de caminho e surge uma atarracada garça-real.

            - Um dia andava aos patos, com a arma preparada, levantou voo uma garça, só que eu não tive tempo para perceber o que era. Disparei logo. Em cheio. O danado do pássaro caiu-me em cima, com o bico a espetar-se numa das mãos (talvez a direita, procurando a ferida). Não tem carne nenhuma. Um peito pequeno. Uma colher apenas.

            As atenções viraram-se para asas que surgiam por detrás de umas moitas. Torneado o obstáculo, tratava-se de gansos domésticos, exercitando as pernas. Ao lado deles, duas jovens garças boieiras procuravam alimento, com o seu bico amarelo.

            - Estávamos três em fila, separados uns dos outros uns bons metros. Isto em 1952, a primeira vez que disparei na Ria. Aproxima-se um ganso. Ao primeiro tiro prossegue o seu voo. O meu outro companheiro atira. O ganso continua. Cinco quilos a voar. Preparo a arma, vou disparar e o bicho começa a cair.

            Com o auxílio de binóculos, passam a ser observadas uma diversidade de espécies. As páginas dos guias são abertas para confirmar a observação. Alguns dispensam pesquisa: cegonhas, patos-reais (nem os mencionei, senão levavam chumbo) e andorinhas.

            - Esta é uma andorinha-dos-beirais. Vejam a cauda – apontava um ornitólogo, carregando uma máquina fotográfica, com uma lente enorme – em “V” curta.

            Outras espécies, novas demonstrações. Andorinhões, Falcão, Alvéola (comum?), Cartaxo… - cartaz, pai? É para olharmos para o cartaz? Página 254 do Guia Fapas. Vês? Já fugiu.

            - Aqui temos um bispo-de-coroa-amarela. Introduzido – assegurava o fotógrafo, dialogando com a guia. Lente apontada ao pássaro amarelo. Um voo rápido e escondeu-se. Está ali! – diziam. Os outros apontavam binóculos. Ao fim de alguns metros, com melhor ângulo foi possível conhecê-lo. Um “abelhão gigante” – definiam os mais atentos. Parece deixar um rastro no ar ao voar, ainda ouvi. Do outro lado, uma garça branca, com o seu bico preto. O bispo está a destruir o habitat da escrevedeira – disse-nos o fotógrafo, anunciando-se como profissional, precisamente, de aves. Não lhe perguntei o nome, esqueci-me.

            - Chapim, chapim. Reconhece-se pelo chamamento. Qual será? O ornitólogo profissional saca de telemóvel e começa a reproduzir o som dos tipos de chapim. Seria este? Não, não, consensual e por aí fora, até eliminarmos todas as hipóteses. Provavelmente não era um chapim – concluiu no final.

            Um pequeno pássaro azul mostrou-se junto a um charco. Não o vi mais, por isso não pude chamar a atenção dos restantes observadores. Uma garça-vermelha com o seu aspecto velho e cinzento é decretada em extinção. Durante o resto do percurso vou ver várias, como das outras vezes que percorri a Bio-Ria. Aquele a voar é o coelheiro, vejam o pescoço esticado.

            - O coelheiro tem o bico arredondado, assegura-me o caçador, preparando-se para retirar da memória, uma qualquer estória de chumbo espalhado.

            - Um buteo – anuncia a guia, Sofia, fixei-lhe o nome. Atenção redobrada. Não descansei, enquanto não identificou a espécie. É uma águia de asa-redonda. Passados uns metros, observámos uma águia-sapeira, que sorrateiramente se escondeu no meio dos campos de arroz.

            Tempo de regressar. Fico para trás, com os meus filhos. O amarelo do bispo fica pousado a dois metros do local em que descansamos. Nem preciso de binóculos para o ver. Voa mesmo rápido. Não se afasta muito daquela zona. Temos oportunidade para o observar várias vezes.

            Juntamo-nos ao grupo. Parado a olhar para um charco. O mesmo charco do pássaro azul. É um guarda-rios. Indicações para o observar com os binóculos, no final da margem direita do charco, em cima de ramo do canavial, e como os mais pequenos não conseguiam fixar, o fotógrafo serve-se da sua máquina digital e assim proporciona a imagem a todos.

            - Não lhe deste um tiro? É tão pequeno!? – respondi, colocando o polegar e o indicador a definindo o tamanho da ave. É bonito – disse-me o caçador.

            - Ali, temos um, uma… é uma perdiz. É agora que começa o tiroteio, pensei. Afinal não é. Uma galinha – d’água, sem dúvida. Deixem ver, deixem ver, utilizava os seus binóculos e não o zoom da câmara fotográfica, enquanto os outros permaneciam na expectativa. Os membros da organização sorriam e procuravam nos guias as respectivas imagens para comprovar. Não, não é. Então? É ou não? Vire a página do Fapas, por favor, uma atrás, isso. Estão a ver, apontando para um frango-d´água, era assim mais riscado no abdómen. Isto é raro. Nunca saem dos canaviais. Isto é um troféu. Um momento único para os observadores de aves.

            - Têm as patas muito compridas, para andarem nos canaviais, diz-me o caçador, já sem munições e demonstrando um forte conhecimento ornitólogo, percebendo-se o seu gosto em estar em contacto com a natureza, propondo tréguas ao compreender que o meu relato apenas servia para partilhar observações de aves em liberdade.

            Nunca consegui caçar um flamingo, confidencia-me.

            Eu vi dezenas deles mas, não digo nada, para os proteger.

            Atrás de mim, o grande animador da jornada ornitológica explica-me como obteve uma fotografia de cria de flamingo. Contando que nascem com uma pelugem cinzenta. Penso na história do patinho-feio, só que ele remata logo: são bonitos.    

 

(a publicar no dia 15/09/10)

Sem comentários: