terça-feira, setembro 28, 2010

Lua_de_mel

            Devia ter parado a tempo. Ter tido coragem para explicar tudo a Clara. Já não a amo e não fui capaz de o assumir. Continuei com a farsa deste noivado, mesmo sabendo que a minha obsessão é a Emília. O casamento não se devia ter realizado. Estou aqui casado de fresco a pensar noutra rapariga. Como me vou livrar disto? Olha, mais um sms. É da Emília. Sempre a provocar-me. Sempre a enviar-me mensagens, ou a telefonar-me. Vou disfarçando o melhor que posso para a Clara não desconfiar. Invento o remetente. Leio-lhe em voz alta mensagens fictícias, sabendo que ela não se dará ao trabalho de pegar no telemóvel. E agora como saio deste casamento, sem beliscar a minha reputação social? Preciso de ficar com o dinheiro da Clara. Tenho que montar um ardil…

            - Rodrigo, anda cá baixo. Depressa!

            Chama-me. O que terá acontecido? Ontem cismou que lhe roubaram comida do frigorífico. Tive alguma dificuldade em provar-lhe que estava enganada. Desconfiada. É uma característica que não lhe conhecia. Vou descer antes que desate a berrar o meu nome.

            - Rodrigo. Desapareceu mais comida. Tenho a certeza. Não me contraries. Tenho a certeza. Não aguento isto. Desci e quando cheguei à cozinha ouvi um barulho muito estranho, vindo da cave, tens que ir ver o que se passa. Será que está por lá alguém? Ou entrará por uma porta ou janela mal fechada?

            Nem consegui argumentar. Dei por mim a descer a uma cave desconhecida, com uma vassoura na mão e na outra uma lanterna, à procura do incerto. Não esperava encontrar ninguém, por isso, fiquei surpreendido quando no extremo do foco de luz vi um rosto. Tão ou mais assustado do que eu. Consegui não gritar e ao pedido do homem para não o denunciar, percebi ter encontrado naquele estranho a solução para o meu problema.

            Subi, transparecendo tranquilidade. Assegurei ter encontrando uma entrada de ar, suficiente para derrubar uns objectos. A demora devera-se ao arrumo e ao engendrar forma de tapar aquela correnteza. Sobre o homem, nem uma palavra.

            Sosseguei-a. Tivemos um dia calmo. Um passeio pela propriedade. Consegui desviar a sua atenção. Ela explicou-me o desenvolvimento da herdade. Os dados cronológicos, as culturas, as construções surgidas, os vários trabalhadores que por aqui passaram, famílias inteiras. Depois de jantar, revimos o vídeo do nosso casamento, com imagens captadas por um amigo. Um momento a dois, que a relaxou. E permitiu não se discutir mais o roubo de comida.

            Um fugitivo na cave. Tive sorte. Fiz um acordo com ele, não o denuncio e levo-lhe comida durante uns dias. Depois vou cobrar-lhe o favor. Sem ele se aperceber, claro. Arranjo uma forma de ele fugir daqui, simulando um assalto. Leva-me o carro e finge agredir-me. Entretanto, ganho coragem e acabo com Clara. A culpa recairá sobre ele, estou certo.

            Não, não. Algo de estranho se passa nesta casa. O Rodrigo não come assim tanto. Todos os dias desaparece comida. Ele sempre a afirmar que foi ele que comeu mais um pouco. Uma ceia, enquanto eu estava a dormir. Um pequeno-almoço reforçado pela manhã, enquanto eu dormia. Não pode ser. Ele sempre comeu pouco. Tanto apetite, bolas. Os ruídos desapareceram. Mas, algo de estranho está a acontecer aqui. Vou averiguar.

            Clara desceu à cave e viu um tabuleiro com louça no fundo da escada. Habituando os seus olhos ao escuro, viu um corpo de homem dormindo. Encheu-se de coragem, pois estava em casa dos seus pais e via agora que as suas suspeitas estavam certas, abeirou-se dele acordando-o. Reconheceu-o. Era o sobrinho da antiga cozinheira. Ele explicou-lhe a sua vida. Porque tinha sido condenado, uns murros levados ao extremo, por causa de uma moça lá da aldeia. A oportunidade de se evadir e a escolha daquela casa vazia como esconderijo, foram aceites por Clara. O interrogatório prosseguiu, com esta a dar-se conta da mentira do marido. Clara percebeu que além da ocultação inicial, a alimentação continuou por vários dias. Devia existir um objectivo maquiavélico por parte de Rodrigo. Sem grande esforço, Clara obrigou o sobrinho da cozinheira a jurar-lhe fidelidade.

            Rodrigo está nervoso. Combinou com o evadido, promover a sua fuga nessa noite. Clara subiu ao quarto. Rodrigo prepara a arma para liquidar Clara, só depois abrirá a porta da cave. Entretanto, houve um carro a aproximar-se da casa. Interroga-se sobre quem será? Nem tem tempo para espreitar. Batem na porta com convicção. Rodrigo abre e vê Emília que prontamente o abraça e beija. Sem perceber o que faz a sua amante ali, vê-a a pegar no telemóvel, mostrando-lhe uma mensagem supostamente sua. Rodrigo não reconhece o seu teor. Entretanto a cara de Emília tornou-se séria, focando algo nas costas de Rodrigo. Este ao voltar-se é surpreendido com a figura do evadido, com a arma que ele tinha escolhido. Ouve-se um tiro. O sobrinho da cozinheira entrega a arma a Rodrigo e sai pela porta. Desaparece no escuro. Rodrigo olha para Emília que jaz no chão. Dobra-se sobre ela e vê o sangue a escorrer do seu corpo. Clara aparece no cimo das escadas.

            - Rodrigo. Rodrigo? Que fazes com essa arma na mão? Quem é essa mulher? Não! É a Emília. Atingiste a Emília, Rodrigo?

            - Não, Clara. Não fui eu, foi o evadido. O que se escondia na cave.

            - Rodrigo, na cave não estava ninguém. Tu próprio me asseguraste.

            Vendo-se em desespero, Rodrigo aponta a arma a Clara e dispara. Ouve-se um som estranho. Clara não cai. No alpendre da casa alertado pelo som do primeiro tiro, surge Joaquim, o encarregado das cavalariças, que sem dificuldade imobiliza Rodrigo.  

 

(a publicar no dia 30/09/10)      

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