Antes de sair de casa, transfiro os trocos da carteira para o bolso das calças. Faço-o prevendo facilidade futura. A comodidade conseguida deslocando, equilibrando peso, não é a razão do gesto. Nem questões de segurança, embora não tenha esquecido a técnica de um amigo, munido de moedas no bolso da frente e com as notas colocadas no bolso de trás das calças: ao ser confrontado com um assaltante, despejou os bolsos da frente, mostrando os forros, dizendo-lhe ser tudo o que tinha. Resultou.
As moedas ficam disponíveis para os assédios da cidade.
Um vendedor da revista Cais, um músico de esquina, um artista que rabisca, a giz, Cristos na calçada de granito, um estrangeiro que procura desesperadamente regressar a casa, mais os clássicos arrumadores e os demais incapacitados vão recebendo os trocos disponíveis. Às vezes aparecem uns brindes duma associação de beneficência a propor comparticipação, ou umas senhas dum futuro sorteio de automóvel, promovido pelos Bombeiros, ou qualquer instituição, com sede distante e sim senhor, contribuo.
No meio da generosidade, vou registando uns episódios. À porta da estação de Metro no Bolhão, um homem ao subir a escada do subterrâneo encontra um conhecido de longa data e como não se viam há muito tempo, procura atualizar a informação respeitante à vida do outro. Conversa puxa conversa, o sujeito encontrado, o que estava à superfície, acaba por confessar, estar naquela esquina a pedir e por isso, não podia continuar a conversa.
Não dou muito. Prefiro dividir por muitos. Numa tarde correu mal. Ou podia ter corrido. Deixo a esposa no multibanco e avanço cem metros para uma sombra, pois tinha o filho, na época único, a dormir no banco de trás. Vidro aberto, estava calor. Pelo retrovisor vejo aproximar-se um vulto. Deixo-me estar com o vidro aberto. Era zarolho o fulano. Tagarela. Falou-me dos perigos daquela rua. Dos assaltos junto ao multibanco. Dei-lhe resposta. Espreitei pelo retrovisor. Não vi ninguém. Percebi na alhada em que estava inserido. Filho no carro, esposa no multibanco sem a ver e o fulano encostado à janela. As moedas, aí uns cinco euros, junto à alavanca das velocidades foram a salvação. Sem deixar de conversar com ele e dando umas gargalhadas para demonstrar estar seguro com o teor da conversa, agarrei em todas e entreguei-as, sem ele pedir nada:
- Fique descansado que não acontece nada à patroa, disse-me, a despedir-se seguindo em frente. Assim foi.
Esqueci-me atrás de mencionar, as ciganas. As que pedem a mão para leitura. Cravando uma moeda, é certo. Sempre que me aparecem, divirto-me um bocado. Lá estendo as mãos e vou ouvindo a ladainha. Vou-me rindo com a capacidade oratória daquelas mulheres. Se forem bem-intencionadas, nada de desagradável dizem. Se a intenção for cravar mais uns trocos, ouvimos todo o tipo de provocações, já num tom apocalítico. Para tudo têm solução, basta pagar, claro.
Desta arte de viver a pedir, contam-me a habilidade de um arrumador da cidade invicta. Na mesma rua tem 50 clientes. A todos, cobra cinco euros por semana. Tem como funções diárias: arranjar estacionamento e colocar moedas no pacómetro, retirando o comprovativo de estacionamento, caso se aproxime a polícia municipal ou os agentes responsáveis por essa gestão. Como os seus clientes vão trabalhar munidos de pastas, o arrumador transporta-a até aos seus escritórios. Delicado, nos dias em que a sua higiene não está em dia, esquiva-se a esta função e tem a humildade de desculpar-se. Por vezes, lá aparece uma multa num dos seus clientes. Na hora desloca-se à esquadra, pagando por isso, a respetiva taxa pela importância mínima. É depois reembolsado pelos clientes. Estes preferem estacionar em frente ao seu local de trabalho, sendo-lhes mais vantajoso pagar uma ou outra multa ocasional, mais os cinco euros semanais, do que inserir moedas diariamente nos cofres da autarquia local.
A capacidade empreendedora do arrumador suavizou o aborrecimento mútuo. A sistematização do discurso, do local, do período do dia, da ação, torna banal e piedoso o momento.
Finalizo, contando o episódio de um nosso conterrâneo. Na capital, na estação salvo erro de metro, apercebeu-se das manobras suspeitas de um sujeito. Estando os dois sozinhos nessa estação, não podia pedir ajuda. O sujeito aproximava-se e o nosso conterrâneo pensou que ia ser assaltado. Precavendo-se, pôs umas moedas de baixo valor na mão e quando o outro estava suficientemente próximo, pediu-lhe dinheiro. O improviso salvou-lhe a carteira.
(a publicar dia 04/10/12)
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