quarta-feira, junho 26, 2013

A hora do ardina

            Na Praça esticava-se a noite. Após o fecho dos diversos estabelecimentos, prolongavam-se as conversas por mais umas horas. Temas correntes, sem época precisa. Sazonalmente, debaixo dos arcos do Parque América, nos dias frios, ou nos bancos centrais, junto à vegetação, nas noites de verão.
A luz pública iluminava as vozes. As sombras escondiam as diferenças. Discutia-se futebol e política, da mesma forma acalorada que se defendiam os gostos musicais e cinematográficos - atropelando as ideias dos outros. Trocavam-se conhecimentos escolares, os ensinamentos da filosofia, da história, da biologia, entre outras conversas mundanas. E planeavam-se férias. Escapadinhas no valor da mesada, ou da remuneração do trabalho no mês de Julho.
As diferenças suburbanas, acentuadas pelo pós-escolar prematuro de muitos jovens, eram assimiladas sem classes. As frustrações sobrepunham-se à harmonia do entendimento e os alvos eram sempre os que prolongavam os estudos. A violência era latente, explodindo sempre em confronto físico honesto, salvaguardando-se as amizades.
O futuro não existia. O objetivo era inserir uma moeda de vinte e cinco escudos numa máquina e desfrutar dos créditos. Evitar abanar os flippers em demasia e conseguir uns créditos para esticar a tarde, ou o princípio da noite, prolongando a diversão.
A marginalidade convivia paredes meias connosco. A linha era ténue, embora a responsabilidade tivesse sempre prevalecido. Para isso, contribuíram os sonhos de cada um, a ambição pessoal e uma mudança nos hábitos de diversão.
Nas primeiras madrugadas vividas na Praça, com o intuito de aceder às traseiras da padaria, para comprar pão quente e meia-lua, constatávamos as rotinas de quem trabalhava à noite.
Cedo, muito cedo - para nós (para quem dormia, seria tarde), uma carrinha entrava a grande velocidade na Praça, vinda de norte. Abrandava junto aos arcos, largava dois grandes embrulhos e seguia para Sul. Não se pense tratar-se de uma entrega de uma substância ilícita, o patrulhamento à paisana era garantido nessa época naquelas ruas - várias vezes as nossas conversas foram animadas precisamente pelos dois polícias destinados para o efeito. A carrinha era do Jornal de Notícias, ou da sua empresa de distribuição e os embrulhos eram precisamente da edição desse dia. Uns minutos depois, aparecia o Sr. Jaime. Desconfiado perante a nossa saudação, lá respondia atarefado, carregando os volumes e desaparecendo para os seus afazeres.
A sua chegada era o fim da nossa noite.
A partir dessa hora começavam a surgir os outros trabalhadores. O carro da recolha do lixo, com as suas luzes amarelas, obrigava os menos prevenidos a aceder a casa e a carregar o lixo para o rés-do-chão. Falhar essa tarefa era denunciar a hora de chegada a casa, além do vexame de colocar o saco do lixo, de novo dentro do caixote.
Sensivelmente uma hora depois a padeira atacava os prédios. O pão era colocado à porta de cada cliente. Entrar em casa de pão na mão, o que era apetecível quando se regressava cheio de fome, era outro sinal denunciante da hora do fim da noitada.
O cúmulo na vida de boémia, ao fim de semana, era entrar em casa de jornal na mão. A distribuição à porta era efetuada já perto das 7 horas, pelo “Jaime dos jornais”. Via-se os títulos, espreitava-se o jornal do vizinho, algumas vezes um dos jornais tombava do 2º andar, obrigando a descer toda a escadaria, para voltar a subir os 42 degraus, colocando tudo em ordem, sem prejudicar o serviço de quem trabalhava toda a noite.
À semana havia outro limite, que algumas vezes era ultrapassado, embora o interesse do relato não seja pertinente.
O falecimento do Sr. Jaime Ferreira representa o fim dos ardinas da cidade, escreveu-se nos jornais locais. Eu sempre o vi a trabalhar, durante a madrugada, ou em hora vespertina, quando ia comprar A Capital, ou procurava uma revista no escaparate do quiosque por debaixo das antigas instalações da PSP.
Para mim, o Sr. Jaime representa um dos obreiros honestos, essenciais para um conceito de qualidade vida que existe no centro de S. João da Madeira.
A sua ação noturna impôs um horário à minha vida de boémio, por isso, não podia deixar de evocá-lo.        
 
(a publicar no dia 27/06/13)

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