quarta-feira, abril 29, 2015

Para lá do palco

                O Festival de Teatro de S. João da Madeira transcende os palcos, os bastidores, as plateias, enfim, as duas salas onde decorrem os espetáculos.

                A Escola Dr. Serafim Leite envolve os seus alunos e não se limita a isso. A comunidade escolar responde favoravelmente, com outras encenações.

A cidade comparece. São centenas a assistir.

O programa alarga-se aos grupos de teatro local e mesmo os de terras vizinhas não são esquecidos.

Uma fórmula que resulta todos os anos e ainda acrescenta peças de companhias do panorama nacional na programação. Ano após ano, nove vezes sem interrupção, escrevem-se peças, estreiam-se gargalhadas, ensaiam-se dramas, sempre com inovação, alternando o humor com o sério.

                A ousadia fica registada nos dias com teatro em S. João da Madeira. Na taxa de ocupação das salas, nas plateias esgotadas, na dupla exibição para atender à procura de espetadores.

                É impossível ficar indiferente.

                É importante focar a diferença.

                Uma ação escolar não limitada às salas de aulas, com capacidade de abraçar a comunidade regional, é algo incomum. A raridade merece referência e será sempre bom enaltecer o feito, esperando que sirva de exemplo para outro tipo de mobilizações envolvendo a comunidade.

                Tantas áreas que precisam de cooperação, como a preservação ambiental, a divulgação da ciência, mesmo outras artes e até algumas atividades desportivas, não esquecendo eventos de moda, devendo-se neste caso envolver os comerciantes locais.

Tudo isto poderá ser um desafio para os agrupamentos escolares e para as suas inúmeras valências. Esperando-se um movimento exógeno, ultrapassando os limites escolares e partindo para a totalidade da cidade e da região que a envolve, à semelhança do Festival de Teatro.

Para finalizar, convém relembrar que há algumas décadas atrás, devido à oferta das infra-estruturas diferenciadoras, as escolas eram, obviamente, locais de estudo e também de tempos de lazer. A transgressão das grades da Escola Dr. Serafim Leite, por exemplo, era frequente, mesmo ao fim-de-semana, para acesso aos campos desportivos ali existentes. Volvidos todos estes anos, realça-se a inversão. A expansão da Escola, como “Espaço Aberto” é a prova de que com boa vontade e intensa dedicação é possível promover agradáveis organizações.

   

   

(a publicar no dia 30/04/15)

quarta-feira, abril 15, 2015

Paradoxos do desporto

                O Comité Olímpico Português (COP) decidiu abanar a estrutura do desporto nacional, ao apresentar aos partidos políticos com assento parlamentar e federações desportivas um retrato pouco animador.

                A estagnação do número de atletas federados e os escassos bons resultados obtidos em grandes competições são consequências de uma política desportiva mal delineada, segundo o COP. Com esbanjamento de dinheiro, na construção de excessivos centros de alto rendimento e com pouca articulação com o desporto escolar, conclui o documento.

                O mérito dos resultados recai completamente para atletas excepcionais e demonstra a pouca contextualização para a repetição dos mesmos, é subentendido no estudo.

                Convém recordar as medalhas portuguesas em Jogos Olímpicos nos últimos 40 anos: Canoagem – Londres 2012; Atletismo e Triatlo - Pequim 2008; Atletismo e ciclismo – Atenas 2004; Judo e Atletismo  – Sidney 2000; Atletismo e Vela – Atlanta 1996; Atletismo – Seul 1988; Atletismo – Los Angeles 1984; Atletismo e Tiro com armas de caça – Montreal – 1976. 

                Apesar do atletismo se prolongar premiado durante várias décadas, convém recordar as medalhas obtidas por disciplina: meio fundo e fundo em 1976, 1984, 1988, 1996 e 2000. Em 2004, Portugal ainda ganha uma medalha no meio fundo e curiosamente arrecada uma medalha nos 100 metros. Em 2008, a medalha foi conseguida numa prova de saltos, por definição mais técnica – o triplo salto.

                A dispersão por modalidade e uma evolução técnica dos desportos premiados em Olimpíada ficam demonstrados. A casualidade por atleta, ou o prémio pelo seu esforço e empenho poderiam ser objeto de análise, no entanto, nem este é o espaço certo, nem o propósito deste artigo.

                O outro indicador apresentado no estudo do COP é curioso: a estagnação do número de atletas federados. Existe a ideia, empírica, de os Portugueses estarem mais ativos, com mais horas dedicadas ao exercício físico e à vida saudável. Refletindo-se estas boas práticas com mais inscritos em provas populares de atletismo, entre outros eventos. Tal facto parece não corresponder a um aumento do número de atletas inscritos no desporto federado.

Existem mais atletas, mas não federados e ao mesmo tempo, surge outro paradoxo: existem atualmente mais atletas nas estradas (análogos aos corredores de meio-fundo e fundo) e os resultados desportivos internacionais nas disciplinas correspondentes são piores.

Nem tudo é mau. A melhoria no método de treino tem que ser reconhecida. E explica os bons resultados. Além da melhoria generalizada das condições de treino. Só que tudo isto não chega para a consistência de resultados internacionais.

O estudo do COP aponta para a má aplicação do investimento público, pela disseminação de centros de alto rendimento no país, 13 ao todo, quando em países com melhores índices económicos e sociais, apenas existem 5 a 6 desses pólos e esses países tem resultados desportivos mais consistentes. A viabilidade financeira destes centros, pela pouca ocupação, é hoje posta em causa.

O documento foca ainda a necessidade de articular o sistema escolar, com a identificação e captação de talentos desportivos e, não menos importante, pela criação de percursos escolares compatíveis com os estudos e a preparação desportiva, à semelhança do que existe nas artes, com o ensino articulado.

Como se prepara a Carta Desportiva do concelho, é importante que as conclusões do citado estudo estejam presentes, para evitar-se directrizes erradas (ainda há 8 anos se projetava a construção de um centro de alto rendimento em S. João da Madeira) e se tomem decisões mais consistentes com as necessidades reais do desporto local, baseado no ecletismo e no associativismo.

Nota final: Ana Rodrigues voltou aos resultados excepcionais e o regresso aos Jogos Olímpicos pode ter ficado assegurado. Para já, um mínimo B foi conseguido. Tal como há 4 anos, a história parece repetir-se.

 

(a publicar no dia 16/04/15)

quarta-feira, abril 08, 2015

Os anos do cinema

                Ficou tudo escrito acerca de Manoel Oliveira.

Será pretensioso acrescentar umas linhas sobre a vida e a obra do realizador. Vou correr esse risco.

                Reconhecido como um dos grandes cineastas europeus, Manoel Oliveira teve a oportunidade, pela sua longevidade, de ser homenageado atempadamente pela sociedade portuguesa.

                Torna-se difícil escrever algo distinto, sem repisar os lugares comuns destes momentos, ou ampliar elogios à obra do realizador.

Há três aspetos que são obrigatórios no elogio ao cineasta português: a temporalidade das imagens do país, a visão histórica de Portugal e por fim, a evocação da literatura nacional.

Filmar o país no século XXI e obter uma imagem datada do século anterior foi uma particularidade da obra de Oliveira. As encostas do Douro, os seus solares, o casario e ruelas das vilas, os lugarejos do Alto Minho, imagens seleccionadas para vários dos seus filmes, fazem parte da recolha de quem viajou por esses lugares esquecidos e muitos daqueles planos, remetem-nos para essa memória pessoal. No fundo, um reencontro com o nosso passado.

A história de Portugal é, segundo Manoel Oliveira, ligeiramente diferente da que nos ensinam os manuais escolares. Como qualquer país conquistador, houve vitórias e derrotas em batalhas campais. Conquistas e reconquistas territoriais sucessivas até à definição da fronteira, ou mesmo durante a expansão marítima. Infelizmente, os manuais escolares só fazem referência a derrotas na expansão: uma em Fez e outra em Alcácer Quibir. Pelo realizador, ficamos a saber que não faz sentido esta visão heróica de Portugal. Desde a derrota na batalha de Badajoz, D. Afonso Henriques, ao não respeitar os tratados firmados, inaugurou uma história normal para um país. Além da crítica à propaganda nacionalista, o cinema permitiu revelar a normalidade de um povo, durante anos intoxicados com a bravia dos seus antepassados.

Camilo Castelo Branco, José Régio, Agustina Bessa Luís e por fim, Raul Brandão são alguns dos escritores presentes na obra do realizador portuense. Alguns vêem a origem geográfica como foco comum. Outros chamaram-lhe o cineasta literário, embora tal designação não seja bem aceite pelos seus seguidores, pois preferem vê-lo como realizador de cinema e não como um adaptador de literatura ao cinema. A evocação da literatura na obra de Manoel Oliveira é uma homenagem do mestre aos seus mestres. Ao filmar as sombras de Raul Brandão, o realizador dá-as a conhecer ao mundo. O mesmo acontecendo com a obra de Agustina, ou com o perpetuar, por mais um século, dos amores de perdição de Camilo.

No posfácio do livro “Páscoa Feliz”, escrito pelo seu autor José Rodrigues Miguéis, este refere-se aos rótulos que um escritor recebe por ter vivido num determinado país, como se a criatividade dependesse apenas deste factor. José Rodrigues Miguéis não se pôs em bicos de pés, descartou-se da vivência norte-americana. Há, no entanto, uma influência do género que se adapta. A comparação com Raul Brandão, aquando da publicação da “Páscoa Feliz”, deixou o autor lisonjeado, ao ser reconhecida a claustrofobia mental do personagem do seu livro e pela casualidade do desaparecimento deste escritor.

A sucessão, um conceito tão português.

No cinema é tempo de aventar hipóteses. Os próximos tempos serão de comparação. Esperemos que a longevidade de Manoel Oliveira tenha permitido ao cinema português preparar-se para esses tempos, não prejudicando o trabalho das novas gerações. 

 

(a publicar no dia 09/04/15)

 

quarta-feira, abril 01, 2015

Aqui há gato

                A edificação de quarteirões na zona central da cidade deixou marcas da evolução do urbanismo ao longo dos anos.

                Antes do planeamento urbano, das ferramentas apropriadas, os PDM, os plano de urbanismo e os planos de pormenor, os quarteirões centrais continham fábricas, moradias individuais, prédios de poucos andares e nalguns casos, alguns campos formavam uma das frentes.   

                Estes campos, outrora rasgados para dar lugar a ruas ou estradas, podiam conter hortas ou mesmo árvores de fruto, podendo no seu conjunto, apelidar-se de pequenos pomares. Muitas casas mantinham nas traseiras esses sinais dos tempos agrícolas da povoação. Embora houvesse terrenos em pousio, já à espera da evolução urbana, nesses quarteirões permaneciam os vestígios do passado pré-industrial da cidade.

                Posso enumerar alguns desses quarteirões e dos terrenos outrora agrícolas, hoje em pousio: na Rua Benjamim Araújo, nos dois lados da rua; atrás na Rua Sá Carneiro, temos mais um exemplar; o interior do quarteirão formado pela Praça Luís Ribeiro – Rua da Liberdade – Rua Júlio Dinis – Rua 11 de Outubro – Rua Padre Oliveira, hoje exposto pela demolição das moradias nesta última rua. A estes exemplos podia juntar-se até há 20 anos, a Rua João de Deus e mesmo a Rua do Dourado.

Quem percorrer as ruas centrais para o lado poente da cidade, sem dificuldade encontrará outros exemplos.

                Uma das características destes terrenos agrícolas era a existência de animais domésticos. Pombos, cães e gatos, perduraram mais no tempo. No caso destes últimos, pela sua capacidade de mobilidade, foram-se movendo de uns quarteirões para outros, ocupando as traseiras das moradias, ou de prédios de pequeno porte.

                Esta mobilidade, aliada à independência e à oportunidade de saltar das traseiras para a frente, permitia aos gatos circularam pelas ruas da cidade, a qualquer hora do dia.

                Hoje em dia, quando se entra na Praceta Júlio Dinis, é usual depararmo-nos com três gatos. Estendidos ao sol, indiferentes aos automóveis que por ali estacionam. Por vezes, um deles empoleira-se numa caixa elétrica, junto à entrada de um dos prédios. Pela observação diária, coincidente com a minha hora de almoço, apercebi-me que estão à espera da refeição, fornecida por mão humana e amiga. Antes ou depois do repasto, além da sorna, também é frequente vê-los em correrias, perseguindo-se uns aos outros, ou fintando as pernas dos transeuntes.  

                A Praceta Júlio Dinis, aterrada ao longo dos anos em cima de um terreno agrícola manteve uma ligação com o passado. A abertura para as traseiras de um prédio, sito na Rua do Visconde, permite visualizar os restos dessa época em que a construção não significava ocupação total da área de terreno. Ali ainda perduram árvores de fruto e uma nesga de terreno, que poderá ter sido cultivada no passado. São estes vestígios que enquadram os gatos.

                Os pequenos felinos, como animal de rua, atravessaram a modernidade da povoação. Por isso, merecem o reconhecimento como animal doméstico da cidade. 

                Posto isto, desejo boa Páscoa para todos.         

 

(a publicar no dia 02/04/15)