quarta-feira, dezembro 02, 2009

Hipermercado

            Vasco deambulava pelos corredores do hipermercado, empurrando o carrinho à procura dos produtos que constavam da lista de compras, timidamente escondida na mão esquerda, quando os seus olhos fitaram uma cara conhecida. Não muito longe, à sua frente, estava a sua primeira namorada, Marina. Sem perceber bem porquê, quase instintivamente, Vasco cortou logo à esquerda para uma qualquer artéria, de artigos semelhantes com marcas e cores diferentes, fingindo não ter reparado. Vasco ficou com a ligeira impressão de ter sido visto, por isso, colocou-se em atalaia, posicionado de forma a lhe permitir, de soslaio, observar o entroncamento do corredor principal com a artéria em que se encontrava.

            Esperou uns segundos e verificou que não se tinha enganado. Enquanto passava, o olhar de Marina permanecia fixo em qualquer ponto vago no fundo corredor, sem virar a cabeça para o local onde Vasco se encontrava. A técnica de quem não quer ver. Ambos estavam a jogar o mesmo jogo.

            É certo que se passaram muitos anos. “Provavelmente ela terá casado, tal como eu e possivelmente terá filhos” – pensou Vasco. Seria mais fácil adoptar uma atitude de dois velhos conhecidos. Um cumprimento efusivo e depois das formalidades do presente, recordar o passado em comum. Seria bom recordar um ou outro episódio esquecido, provavelmente confundir com situações vividas com outra qualquer pessoa e usar aquela expressão "e daquela vez...". No final a despedida até um dia incerto, até qualquer dia, ou até à próxima. É extremamente difícil ter abertura suficiente para recordar certos momentos de intimidade. Mesmo tendo sido os primeiros momentos, no caso de ambos. A virgindade a fugir, a inexperiência de adolescente. A atrapalhação do movimento. O gosto de correr riscos, característico da juventude.

            Vasco voltou para trás. Ficou nas costas de Marina. O seu olhar focou o seu corpo. Oportunidade para comparar com aquele que tinha tocado no passado. A esta distância Vasco não conseguia distinguir os indicadores da passagem do tempo: as rugas e claro, o aparecimento de cabelos brancos. A silhueta de Marina estava diferente? Como estaria corpo dela, com a transformação do passar dos anos? Vasco pensou na sua própria alteração, imaginou a gordura acumulada em certas partes do corpo de Marina, noutras as estrias conquistadas com a perda de massa, ou nos músculos dela mais flácidos, com a celulite nas nádegas e nas pernas… Marina virou à esquerda para a secção dos detergentes. Afinal, ao contrário dele, Marina estava bem conservada.

            Vasco optou por prosseguir na procura dos artigos da lista de compras. Enquanto escolhia os seus artigos e os colocava no carrinho, ele apercebeu-se que todo este jogo de escondidas era uma estupidez, por isso, tinha que a cumprimentar. Imaginou virar duas vezes à esquerda e entrar no mesmo corredor e aproximar-se para, fingindo surpresa, exclamar: Olha quem está por aqui! Há tanto tempo!

            Arriscou, ia correr bem. No momento da segunda viragem, Vasco parou. Provavelmente, Marina estaria acompanhada. Marido ou filhos, ou outro familiar e por isso, não o queria enfrentar. Se calhar ainda não tinha casado. Vasco penaliza-se, podia ter sido lesto a reparar nas suas mãos. Lembrou-se dos pais dela. Detestavam-no. Não admira, a filha a entrar em casa a horas diferentes das habituais, a não dormir algumas noites, ou a recebe-lo às escondidas lá em casa. Parecia estar sozinha. Mas, estava a voltar para trás, por isso o seu plano tinha falhado.

            Na lista de Vasco faltavam dois produtos, do lado oposto à direcção que ela tomou. Seguiu para eles. Colocou-os no carro de compras e decidiu enfrentar o passado, sem compromisso para o presente e para o futuro. Sabia que tinha ficado mais alguma coisa, além do sexo desajeitado e juras de amor eterno, quebradas numas férias. A ideia da infidelidade, a traição, o novo romance sempre agradou a Marina.

            O seu telefone toca. O filho acrescenta um pedido à lista, alterando de novo o seu rumo. Acrescentado o artigo extra aos restantes, Vasco parte para a procura. Quer encontrá-la. Faz os corredores de uma ponta a outra. Costa a costa, duas vezes. Roupas – bebidas, bebidas - roupas. Nada. Procura no corredor das caixas. É engraçado, a memória da primeira vez. Pensamento malicioso. Os corpos nus. Uma nudez total conquistada por etapas. O desejo falou mais forte.

            Chegou à última caixa e nada. Volta para trás, percorre as caixas pela ordem numérica inversa. Focaliza cada pessoa, em cada uma das filas. “Não sei porque a recordei a traição” – pensava Vasco. “Tendência para recordar as mágoas, houve mais do que isso e no entanto, parece que ficou uma ferida para a vida inteira. Relações de adolescente, só isso, nada mais. Naquelas idades não temos a noção do que é a vida, o mundo. Até do que é o amor…” - prosseguiu Vasco.

            Primeira caixa e não há sinais de Marina. Vasco desiste, coloca-se numa fila, com poucas pessoas. “Paciência, perdi-a. Fico sem saber nada do que se passou com ela, ao longo destes anos todos” – resignava-se Vasco.

            Passado uns minutos, entalado na fila, Vasco vê Marina a passar já no lado das lojas. Olha para ele, mostra-se surpreendida por o ver, sorri, cumprimentando. Vasco retribui, a surpresa e o cumprimento. À sua frente, um outro cliente a proceder ao pagamento junto à caixa está parado, a rapariga da caixa não pode avançar, um produto está sem código de barras, sem preço marcado, por isso, empata Vasco no meio da fila. Não consegue alcançá-la. Faz um gesto, mostrando o seu desespero. Vendo a situação dele, Marina, a sua primeira namorada, encolhe os ombros e diz-lhe:

            - Tenho pressa, tenho gente à espera!

            Vasco tenta reagir. Abandonar ali o carrinho, passar para o outro lado, voltar atrás, sair pela passagem destinada a clientes sem compras. Chama-a. Ela olha para trás e sem intenção de esperar, responde-lhe:

            - Fica para a próxima! Vai aparecendo.

            Ele segue-a com o olhar, desesperado pela situação. Pretende descobrir algo sobre a vida dela. Esqueceu-se de olhar para as mãos, bolas!

            Uma voz interrompe a sua faceta de detective: Boa tarde, tem cartão cliente?

            Vasco olha para a caixa, entrega o cartão e volta a focar o corredor, de onde lhe retiraram a atenção. Nada. Já não há sinais dela.

            - É tudo? São 67 euros e 34 cêntimos - ouviu ao fim de alguns minutos, interrompendo os seus pensamentos.

 

(a publicar dia 3/12/09)

 

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