quarta-feira, abril 17, 2013

Adeus Leopold Bloom

Aquela noite de 16 de Junho de 1904, tive-a entre mãos durante mais de cem noites. Todo o inverno, incluindo a quaresma, mais uns dias chuvosos a seguir à Páscoa. Noites essencialmente frias, aquecidas a chá, ou a café, com os olhos postos naquelas páginas. Linha após linha, sem grandes avanços, com o marcador fixado na mesma zona do livro. Virava uma folha, lia mais uma página, o marcador avançava esse tanto. Sozinho no estabelecimento comercial, deambulando pelas ruas de Dublin, elegi para bebida o Irish Coffee, mais apropriado à temperatura da narrativa. Sorvia o líquido, ficaram sempre as natas.
Adeus Shane Macgowan. Ébrio esquecido da adolescência. Agora com dentes novos e barriga saliente, a cantar sentado, sobriamente soletrando todas as silabas das canções. “Dirty old town” é uma memória desse período da vida, não a letra, com os acordes e arranjos musicais, é pelo contrário, toda a minha envolvência urbana, em ruas escurecidas, envolvidas pelos papéis, beatas e outras coisas deitadas para as calçadas, as paredes desbotadas, esburacadas e urinadas, velhos prédios com portas abertas libertando a humidade da escadaria para a rua. Adeus ruivos, adeus duendes, adeus O’Hara, O’Sullivan, O’Neill, O’Connor, O'Brien, Byrne, adeus gente vestida de verde, de copo na mão, entoando: “I am going where streams of whiskey are flowing”.
Adeus Trapattoni, velho crente. Fiquei agarrado uma noite a seguir a um jogo de futebol da Irlanda com a França, falseado pela mão de Thierry Henry, como se o italiano ainda estivesse em Lisboa. Não julguem que foi pela crença do italiano. Ainda não fiz a estrada de Damasco. Anúncio publicitário: Visite a Síria, se tiver dúvidas teológicas ou mesmo ideológicas, percorra a nossa estrada mais famosa. Vindo de Tarso, Saulo transformou-se em Paulo, o mais famoso convertido. Ainda temos explosões e clarões. Fim de anúncio.
A edição pela qual segui a noite de Leopold Bloom, dividia-se em 3 partes. Não tinha explicitamente os 18 capítulos. Tornou difícil a leitura. Requisição, prazos de entrega não cumpridos, mais uma requisição, cartas da bibliotecária informando prazo ultrapassado, tudo regularizado, até à leitura final. Uma odisseia literária. De ilha em ilha, até aos braços de Penélope e ao seu monólogo interior. Capítulo por capítulo, com os estilos de narração diversificados, os passos por Dublin de Leopold, os seus encontros com outros personagens, Stephen Dedalus, entre outros, e um final arrebatador com Molly Bloom e o seu Sim.
Adeus Joyce, James, escritor de Dublin, de Trieste, Paris e Zurique. Irlandês, portanto. Referência literária que só agora tive oportunidade de devorar. A fonte de muitos prosadores, o escritor eleito para tantos.
Adeus Leopold Bloom, judeu convertido ao catolicismo, irlandês indiferente ao nacionalismo, publicitário de profissão - o anti-herói, personagem principal do livro que me preencheu o inverno.
Adeus Ulysses. Voltar-nos-emos a encontrar. A próxima vez será na Odisseia, na de Homero. Com cantos explícitos, personagens e episódios da história da literatura, pelas ilhas e batalhas helénicas. Até ao regresso a Ítaca de Ulisses.
 
(a publicar no dia 18/04/13)
 
 

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