- Respiro o vazio, doutor.
O psiquiatra levantou os olhos, interrompendo a leitura da ficha do cliente. Havia cumprimentado o paciente e passara a ler o seu processo, para recordar a respetiva ficha clínica. Sintomas e medicamentos receitados, estava tudo ali escrito. Ainda não se rendera à informática, preferia os velhos ficheiros personalizados, cheios de notas, que consultava sempre que tinha uma marcação. Procurava ao reencontrar um cliente, verificar sintomas do seu estado de espírito. Ao olhar para Orlando, encontrara o mesmo de sempre. Um alheamento, sem queixas padronizadas, um caso difícil, no entanto,
- Respiro o vazio,
despertara a atenção do médico.
Uma queixa, diferente das habituais de outros doentes. Das dores, das visões, das perseguições, das incompreensões, era uma novidade.
Orlando explicou o vazio. Não tinha interesses. Limitava-se a sair do emprego e a ficar em casa. Não convivia, o seu círculo de lazer era o sofá de casa, esperando pela hora de deitar. Não seguia televisão, lia o jornal da última para a primeira página e ouvia música. Desistira de ver filmes, através do aluguer no vídeo clube, pois o mais próximo de casa fechara. Jamais perdera tempo com a internet, muito menos aderira à era dos computadores pessoais.
O médico ficou atónito. Escolheu dar conselhos e suspendeu a medicação. Propôs-lhe em desafio, que encontrasse nas suas atividades, aquela recordação que o fizesse despertar sentimentos antigos.
Orlando escutou, sem reagir.
Procurou com dificuldade um disco antigo. Ouviu a voz de Richard Buttler, entoando “Pretty in Pink” e nem um sorriso esboçou. Voltou aos CDs de música clássica, a Rossini, tal como nos meses anteriores. Não fez mais nenhum esforço. Nem com um livro, nem procurando rever um filme. Olhava desinteressado para a televisão e limitava-se a ler o jornal diário.
Um final de tarde, a secção cultural do jornal anunciava um festival de cinema italiano, para uma cidade do interior de Portugal. Orlando leu o corpo da notícia, como sempre fazia com as informações culturais. O propósito, da organização deste festival, era trazer a Portugal uma diva do cinema italiano. Para a edição deste ano, a convidada de honra seria Donatella Damiani. Ao ler este nome, Orlando teve dificuldade em reconhecê-lo. Prosseguiu a leitura e encontrou a chave do mistério no parágrafo seguinte, a atriz italiana contracenou com Marcelo Mastroianni num filme de Fellini de 1980, tendo desaparecido do grande ecrã meia dúzia de anos depois.
Na memória de Orlando correram várias imagens dos filmes de Fellini, até que se lembrou de uma rapariga de pele branca, de cabelo escuro e liso. Ficara mais conhecida pelo seu peito generoso e pela sua meiga personagem no filme “A cidade das mulheres”.
Era uma oportunidade.
Conseguiu ligar para o organizador do festival, ofereceu um patrocínio pessoal, com a condição de poder conviver com os convidados de honra. O organizador, de início, recusara a ideia. Quando Orlando informou a quantia que estava disposto a oferecer-lhe, o discurso mudou. Ele próprio, organizador, o acompanharia e faria de tradutor, durante o tempo que Orlando quisesse.
Na véspera do festival, Orlando foi convidado para a sessão de abertura. Pediu para ser apresentado a Donatella Damiani. O organizador aproximou-se de Orlando, acompanhado por uma senhora morena, com um lindo vestido decotado. Aquela cara lembrava-lhe alguém, Orlando não identificava. O organizador falava italiano e ele nada entendia. A italiana sorria-lhe, expressando as suas rugas. Até que o tradutor a apresentou, como Donatella Damiani.
Orlando olhou para ela, sem expressar qualquer sorriso, nem movimento. Olhou de novo para o tradutor e disse-lhe:
- Deve haver engano. Eu procurava a filha e não a mãe.
A italiana interrogou o organizador. Este encolheu os ombros e traduziu. Falavam os dois, muito depressa, argumentando cada um para seu lado, sem olhar para Orlando. Este olhou em redor à procura da jovem atriz italiana. Encontrou um espelho, que refletia a sua imagem e a da senhora italiana. Ao ver os dois corpos, envelhecidos, Orlando interrompeu a conversa:
- Respiro o vazio, Donatella.
O organizador repetiu em italiano. Ficaram os três em silêncio.
Donatella avançou para Orlando e abraçou-o. Sentiu-se apertado. As suas mãos tocaram nas costas da italiana. Orlando sentia o aconchego daquele abraço. Uma sensação de alegria percorreu o seu corpo. Aquele afago durou uma eternidade. Orlando sentiu o forte peito de Donatella a respirar junto ao seu. No momento da separação, os olhos fixaram o decote da italiana. Orlando não podia fugir à tentação.
O tradutor lançou um grito de espanto pela ousadia do patrocinador.
Orlando esperava uma má reação de Donatella mas, para seu espanto, esta soltou enorme gargalhada, ao sentir as mãos, daquele ser estranho, agarradas aos seus seios.
(a publicar no dia 28/11/13)
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