terça-feira, dezembro 16, 2008

Nitrato do Chile

 

            Um pouco por todo o país, mais nos meios rurais, agrícolas se preferirem, era comum encontrar-se nas fachadas de algumas casas, uns painéis publicitários, formados por azulejos, com a silhueta de um cavaleiro e a sua montada em tons negros, sobre um fundo amarelo, representando as cores do amanhecer, com as inscrições "Adubai com Nitrato do Chile". Além deste produto, havia publicidade utilizando o mesmo suporte aos portuguesíssimos pneus "Mabor General", com esta inscrição a preto, envolvida pelo G a vermelho, sobre azulejo branco.

            Alguns subsistiram ao tempo e ainda se conservam nos locais onde foram implantados. Eram os meios de propaganda do Portugal dos anos 70, da minha meninice. Além destes, era frequente encontrar-se na estrada, os pitorescos cartazes do "Licor Beirão", numa época em que na televisão, se repetia as maravilhas do "restaurador Olex" e da "pasta medicinal Couto".

            Poderia evocar o "homem da Regisconta", a figura escura da capa do "Porto Sandeman", partir daqui para outros anúncios televisivos, tipo o da "Laranjina C", ou os históricos da "Citroën", ou da "Coca-Cola" e de recordação em lembrança, perfilhava-se uma série completa, tipo "Anúncios de Graça", completando com os produtos industriais da cidade de outrora, os reclames luminosos "máquinas de costura Oliva" e o boneco dos "colchões Molaflex". 

            Atalhando, porque a hora de fecho da edição começa-se a aproximar e a redacção perde a paciência com os meus atrasos, volto aos nitratos, para justificar a sua evocação. Uma referência ao composto químico, à guerra do Pacífico, entre vários países sul-americanos, apareceu nas minhas incursões literárias. Só por aqui, já tinha premissa justificativa para a recordação.

            Continuando no Chile, evoco agora escritos curiosos pela mão de uma geração de escritores, que viveram na juventude a ilusão da vitória democrática do socialismo. Quando iniciaram as suas prosas muitos anos mais tarde, não é raro encontrar-se as menções a familiares incompreendidos, não alinhados na aventura colectiva e também não indiferentes à revolução militar, reprovando-a. Normalmente, com a incerteza literária, esses antepassados dos escritores são referidos de forma respeitosa e sente-se nas palavras escolhidas uma ponta de nostalgia, por só perceberem os pensamentos desses familiares, pelo traquejo adquirido.

            Desenrolando… eram pessoas que acreditavam sobretudo na humanidade. Uma ideia utópica com traços comuns na obra literária de Miguel Unamuno e Frederico Lorca, para citar escritores ibéricos, finalizando com Miguel Torga e Teixeira de Pascoaes. Repugnava-lhes qualquer ideia de Estado centralizador.

            Apressando o raciocínio…

            Nos tempos actuais, assistimos ao regresso do Estado a vários sectores da nossa vida social. Se esta preocupação é felizmente comum às várias ideologias políticas, não sendo exclusiva de nenhuma sensibilidade, nem partido político, como em tempos defendi nas páginas deste jornal (Setembro de 2007), já a interferência do Estado nos mais variados sectores, é mais difícil de enquadrar na generalidade dos partidos políticos Portugueses.

            Nos últimos anos temos assistido à "municipalização" de S. João da Madeira! Quem observar com atenção as páginas dos jornais locais, verifica com facilidade o peso da Autarquia na edição de notícias. Além dos relatos das reuniões Camarárias, das Assembleias Municipais e de Freguesia, existem várias páginas dando conta de obras em curso, inaugurações e projectos futuros. Fora esta perspectiva de construção, temos uma série de iniciativa promovidas… pela Autarquia, ou com a sua bênção, nas mais variadas áreas. Ou então, a lista de subsídios atribuídos… pela autarquia. E no meio disto tudo, surgem artigos de "opinião" que compilam as notas informativas emitidas… pela autarquia. A situação é de tal forma asfixiante, que chegou-se ao ponto de se transcrever afirmações de um programa televisivo de debate político nacional, no qual o Presidente da autarquia faz parte do painel de comentadores (obviamente o visado não tem qualquer interferência no assunto).

            Numa cidade que é reconhecida pela sua capacidade empreendedora, pela iniciativa das suas gentes, pelo dinamismo dos seus empresários, verificamos que algo está errado. Entre o que as notícias publicadas transcrevem e o que deveria ser uma cidade activa e criativa, existe uma grande diferença. Salvo raro excepções, como por exemplo, a recente acção promovida por um grupo de empresários na Rua do Dourado, criando um espaço de apoio aos pais, que pretendendo fazer as suas compras nesta quadra de Natal, na zona pedonal, podem ali deixar os seus filhos entretidos.

          Não me alongo mais, até porque o limite de espaço e de tempo pretendido pela redacção já foi ultrapassado.

            Para facilitar as próximas edições do jornal, decidi entrar de férias das escritas até Janeiro. Por isso, envio a todos os leitores votos de umas ecuménicas Boas Festas.
 
(a publicar dia 18/12/08)

terça-feira, dezembro 09, 2008

Hajime

                Poucas são as memórias físicas sobreviventes das primeiras edições do Campo de Férias Estamos Juntos, realizado nas traseiras da Escola Primária do Parque. A envolvência e o próprio Tanque - Piscina de 12,5 metros foram reduzidos a escombros, com o intuito de se renovar e modernizar o parque escolar do concelho.

            Dali pouco resta como testemunho dessas organizações, com a excepção da sala (refeitório, senão me engano) utilizada para várias actividades, uma das quais em colchões, o judo.

            Voltar ao "pecado original", digamos assim, é sinónimo de que algo ainda não está bem resolvido na vida da Associação Estamos Juntos. Não no seu dia-a-dia, nem nas actividades que esta Associação desenvolve, para que fique claro e não crie confusões no seu quotidiano.

            Ao longo de todos estes anos de vida da AEJ, permaneceu sempre a ideia de se criar uma secção de judo, para proporcionar o seu ensino a crianças desta cidade. A modalidade tinha surgido, conforme referi, nos primeiros anos, era do agrado dos seus sócios fundadores, pelos princípios desportivos envolvidos – mais ágil, mais flexível, mais rápido e mais forte – e pela imposição de auto-domínio, de capacidade de decisão, de resistência à fadiga e de superação de dificuldades.

            Eu próprio, enquanto presidente da AEJ, no ano 2000 fiz uma tentativa, mal sucedida, para retomar dentro do campo de férias a divulgação do judo.

            Uma outra dinâmica, com a oferta de diferentes modalidades foram melhorando a actividade da AEJ e o judo foi sendo lembrado esporadicamente, no entanto, é necessário reconhecer, ia ficando adiado. Em paralelo, em Santa Maria da Feira arrancava um projecto de formação desportiva, tendo como uma das modalidades, precisamente o judo. Escusado será referir que, atendendo a que tinha por resolver a "falta" da AEJ, inscrevi o meu filho nas respectivas aulas.

            Em Junho passado, quando tive conhecimento do regresso do judo ao Campo de Férias fiquei todo contente. Fui perguntando, sempre que apropriado, pela adesão dos participantes, pela qualidade do trabalho efectuado pelo monitor, esperando que a secção, entretanto, nascesse.

            Em Novembro, recebendo um convite para visitar a extensão da sede da AEJ, nas Corgas, apercebi-me que a modalidade não tinha arrancado e para grande mágoa minha, em Santa Maria da Feira estava tudo parado. Habilmente, nem ele sabe quanto, Pedro Neto, presidente da AEJ, colocou o problema sobre os meus ombros. Devido ao elevado custo de aquisição, faltava encontrar uma solução para os colchões, tatamis em linguagem técnica da modalidade. Apenas isso, pois o técnico tinha ficado apalavrado desde o Verão. Sala, há pelo menos uma disponível no pavilhão das Travessas e os praticantes haveriam de aparecer, certamente.

            Quinze dias decorridos, libertei-me deste peso, conseguindo de um clube da cidade do Porto, o compromisso de empréstimo dos tatamis.

            Coloquei neste processo grande entusiasmo, como o tinha feito há dezoito anos no lançamento do Xadrez, ou nas primeiras conversas, em 2001, com o Ricardo acerca de Capoeira e na concepção do projecto "AEJ – clube das Corgas". Não posso deixar de negar que a motivação adveio da possibilidade de resolver um problema familiar e com isto permitir à AEJ abrir mais uma página na diversidade de modalidades e actividades desportivas.

             Hajime, palavra japonesa no título deste texto, significa no léxico técnico do judo, começar e é utilizado pelo árbitro para dar início ao combate. E no fundo, é só isto que falta.

 

(a publicar no dia 11/12/08) 

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Da Sétima

            O meu interesse pelas artes começou no cinema.

            O privilégio de viver perto do Porto, permitia-me aceder à cidade e no raio de um quilómetro ter várias salas de cinema à disposição. Logo na Praça, junto à paragem de autocarros, havia quatro salas, duas em pleno Batalha, uma ao lado e outra em frente, no Teatro S. João, convertido em sala de projecção. Também o Coliseu e a sua sala mais moderna e apropriada, Passos Manuel, tinham sessões cinematográficas. Nessa rua mais uma sala e descendo um pouco, havia mais oferta, em duas salas de Teatro convertidas à sétima arte. Sem caminhar muito, podia-se aceder ao bestial cinema Trindade, ou optar pelas duas salas do moderno Lumière, ou ainda pelo Teatro Carlos Alberto, ainda com sessões. Um total de treze salas, que não era a totalidade da oferta da cidade.

            Isto em meados da década de oitenta do século passado e beneficiando de um tarifário de autocarro extremamente baixo, que permitia a deslocação de S. João da Madeira para o Porto, por apenas cinquenta escudos. Estes dois factores, de forma conjunta para quem tinha horário disponível para assistir a sessões com transporte colectivo assegurado, ou isoladamente em horários complementares aos profissionais, permitiram a várias pessoas desta cidade assistir a sessões de filmes, que no nosso imaginário são sempre lembradas como empolgantes.

            Este gosto pelo cinema já se fazia sentir num passado mais remoto, só que o declínio de assistência nas sessões projectadas no cinema Imperador, suportada por uma programação intratável, traduziu-se na proliferação de vários clubes de vídeo na cidade, alguns dos quais resistentes e com mais de vinte anos de existência.

            Esta adoração pelo cinema e pelo vídeo são sinais de que a cidade jamais foi um local habitado por gente acéfala.

            Se o aluguer de k7 e DVD permitiam seguir os filmes mais comerciais, mais procurados pelo grande público, existia e ainda subsiste uma série de filmes de culto disponíveis para arrendamento.  

            Foi através deste sistema que mais tarde acedi à história do cinema americano, aos êxitos de Hollywood dos anos 60 e 70 e a muitos dos anos 80, que a pouca idade não me autorizava a visionar.

            Descobri desta forma uma série de filmes das verdadeiras lendas do cinema e pude apreciar o talento de carismáticos actores, actrizes e de vários realizadores arredados da televisão e afastados pelo tempo das grandes salas.

            A maioria dos filmes de Paul Newman, de quem sou apreciador, descobri-os em casa, no sistema Betamax. Em Setembro, no dia seguinte ao da sua morte, depois de lidas as notícias referentes, procurei imagens dos seus filmes na internet. A certa altura, estava a recordar Steve Mcqueen.

            Um exercício que, vim a verificar, aconteceu a muita boa gente.

            Provavelmente pela semelhança na cor dos olhos.

            Ou pelo rótulo de grandes actores desaparecidos.

            Alguns lembraram-se da sua juventude, no processo de procura de identidade e com a identificação pelas personagens interpretadas por actores de cinema. Tudo distante da maturidade.

            Ao rever, por mero acaso, “A grande evasão” percebi porque tinham surgido as saudades pelo desempenho do actor. Desviado das performances de moto, havia, haverá outros valores a destacar. A coragem, a iniciativa, a expressão irrequieta, os olhos sem tréguas ao azul, tentando perceber se, afinal de contas, a inquietude da juventude é coisa para um homem crescido fazer. 

 

 

(a publicar no dia 04/12/08)

terça-feira, novembro 25, 2008

Casas com música

A reconversão de edifícios com valor arquitectónico, ou interesse histórico e público para fins culturais foi um processo iniciado a partir do século passado.

Várias casas, de construção secular, com maior ou menor dimensão, perpetuaram-se até aos nossos dias, pela sua utilidade para local de ensino de artes.

Todo o conceito estaria correcto se o estado de conservação desses imóveis não se tivesse degradado ao longo dos anos. A necessidade de obras de restauro, respectiva reabilitação e adequação a conceitos intrínsecos das várias artes, nem sempre foram conseguidas, ou ficaram adiadas durante anos, por falta de cabimento orçamental.

Neste particular, existiam condições diárias de ensino sem qualquer isolamento térmico, obrigando a gastos suplementares, para se obter a respectiva e necessária climatização, aumentando em muito os custos da gestão corrente de vários estabelecimentos, sempre aflitos para cumprir os seus compromisso programáticos e curriculares.

Qualquer notícia de projectos de modernização dos equipamentos culturais da cidade é efectivamente bem recebida. Peca por tardia a intervenção no Centro de Arte e futuramente na Academia de Música, na qual me vou debruçar no próximo paragrafo.

Segundo veio a público durante o presente ano, a Câmara Municipal de S. João da Madeira pretende restaurar o edifício, onde no século XIX funcionou uma escola primária. O projecto escolhido, da autoria do arquitecto Carvalho Araújo prevê uma série de melhorias, com destaque para o futuro auditório, localizado no centro do edifício, tendo o conceito de foyer da Academia. Além deste importante melhoramento, não foram descurados os isolamentos acústicos deste novo espaço e dos adjacentes, assim como a ventilação e iluminação naturais. A Academia de Música ficará de face renovada, com mais e melhores serviços, onde se inclui uma mediateca e camarins de apoio ao auditório.

O custo total da obra será de setecentos e cinquenta mil euros.

Tudo estaria certo se os conceitos de ensino de música não se tivessem alterado, há já alguns anos. Refiro-me concretamente à proliferação pelo país de Escolas Profissionais de Música, com a adesão de vários jovens, em idade de escolaridade obrigatória.

Esta será a grande amputação ao projecto apresentado, por não prever um apêndice às actuais instalações da Academia de Música, para instalação de uma Escola Profissional. Deste modo, conseguir-se-ia aproveitar sinergias físicas entre as duas escolas, nomeadamente e na partilha de experiências entre alunos.

Este pólo dinâmico de ensino de música seria importante para uma cidade, que pretende diferenciar-se pela cultura. Não apenas pela construção ou reconversão de edifícios mas, pelas sensibilidades, idiossincrasias e talento das suas gentes.

Não emito esta opinião, apenas como reacção ao “trabalho de casa” efectuado por uma concelhia partidária, que sugeriu o aproveitamento das Quintas dos Condes para instalação da referida Escola Profissional.

Nos próximos anos, na área cultural da cidade prevê-se a reconversão do Cinema Imperador, o aproveitamento da Torre da Oliva, além das obras referidas de restauro do Centro de Arte e da Academia de Música. A estes, junte-se os inaugurados recentemente Paços da Cultura e Museu da Chapelaria e teremos suficientes centros de cultura, para uma cidade com oito quilómetros quadrados.

É para a área do conhecimento que a cidade deve convergir. Vejo vários pólos do programa “Ciência-Viva” a serem inaugurados por todo o país. Em S. João da Madeira restam poucos locais na sua zona central para acolher um centro de ciência com capacidade de desenvolver actividades não só no seu interior, como também no exterior. A Quinta dos Condes preenche esses requisitos e a sua disponibilidade para a totalidade da população seria de equacionar. Além disso, este tipo de atracções fazem movimentar no nosso país uma série famílias, vocacionadas para a visita destes “centros”, não se importando com distâncias a percorrer.

Espero que não haja falta de sensibilidade, para implementar estes conceitos modernos do nosso quotidiano.

Não queria terminar sem referir que o atraso da cidade na área do ensino de música, via Escola Profissional, obriga a uma menor de quinze anos, residente nesta cidade, a deslocar-se diariamente para Espinho e a regressar no final das aulas, gastando mais de hora e meia em viagens, via comboio. Como penso não conhecer pessoalmente a estudante, não refiro o seu nome mas, gostaria de enaltecer o seu espírito de sacrifício, pois de outra forma não conseguiria estudar tão intensamente o instrumento musical de eleição.

(a publicar no dia 27/11/08)

quarta-feira, novembro 19, 2008

Nem vai, nem vem

A propósito do centenário da inauguração da linha do Vouga e consequente comemoração neste próximo fim de semana, voltou a ser referida a hipótese de adaptar-se sobre a mesma linha um transporte tipo vai e vem, servindo apenas a cidade de S. João da Madeira.

            Até hoje nunca li um argumento válido para a instalação de tal transporte. Nem percebi em que estudos se baseou a autarquia para verificar qual a sua viabilidade económica e o interesse público de tal obra. Tenho sérias dúvidas sobre a competitividade deste transporte: pela sua extensão (no máximo terá dois quilómetros, com três paragens – ou seja, cada paragem distará da seguinte menos de um quilómetro); pela rigidez dos carris, que não servem a totalidade da população nas suas deslocações internas (numa cidade em que existem transportes colectivos rodoviários a atravessá-la de norte a sul, de este para poente); e considerando que o preço a pagar por um bilhete, será obrigatoriamente barato, tornar viável tal investimento será difícil. Mesmo que esse valor seja reduzido, ou até comparticipado, suportar os futuros custos de exploração de tal transporte não será nada fácil.

            A implementação deste transporte foi uma promessa eleitoral. Não se conseguindo, até ao momento, apoio por parte da secretaria do Estado dos transportes, o executivo municipal avançou com as obras de modernização do Centro Coordenador de Transportes (CCT). Com a sua conclusão praticamente conseguida (mais pala, menos pala), a autarquia inverteu a lógica dos argumentos. Aplicando a técnica do facto consumado, quer-se fazer crer que, as melhorias efectuadas no CCT só estarão completas caso o transporte vai e vem seja uma realidade.

            Esta obsessão relembra-nos os tempos de promoção da Circular Externa, que durante anos agitou a política local e deu em nada, se não considerarmos o pontão do Orreiro, nem o aumento da dívida da autarquia.   

            A linha do Vouga tem merecido outro tipo de atenção ao longo dos últimos anos. O seu actual estado de conservação é péssimo – vários troços foram encerrados por falta de segurança –, são imensas as passagens de níveis “sem guarda”, várias estações e apeadeiros estão ao abandono. Deste estado decrépito só as automotoras se salvaram, ao serem substituídas por outras, mais modernas, transferidas da linha da Póvoa.

Por vários motivos, o número de passageiros transportados tem vindo a aumentar. Apesar da ausência de conservação e da relutância em modernizar a linha, os habitantes da região voltaram a utilizar o comboio, entre as várias paragens existentes no troço entre Espinho e Oliveira de Azeméis. Perceber esta atitude, verificar as causas para este regresso ao transporte ferroviário, ajudaria a projectar uma melhor solução para a linha do Vouga, optando-se por um remate que sirva os reais interesses da população.

            Nestas páginas, defendi por várias vezes a ligação da linha do Vouga ao Metro do Porto. Da primeira vez que o fiz - em 2005 – até hoje, houve vários factores conjunturais que se alteraram: o preço do petróleo, a crise económica e consequentemente a revisão de alguns investimentos importantes para esta região, como a não transferência da Exponor para Santa Maria da Feira, evitaram que surgissem elementos externos capazes de alavancarem um projecto desta natureza.

            A extensão do Metro para sul do Porto é uma reclamação dos autarcas desta região. Prevendo-se no médio prazo, o alargamento dessa rede até ao cimo da Avenida da República de Gaia, é natural que se pensem em várias soluções, para se conseguir satisfazer as necessidades das populações dos concelhos a sul e a vontade dos seus autarcas.

            A grande vantagem da linha do Vouga, para ampliação do metro para sul, é o aproveitamento do seu actual traçado, permitindo reduzir os custos de expropriação. Contudo, a ligação de Espinho para Norte será sempre onerosa e por isso, só provavelmente a muito longo prazo é que será uma realidade.

Não queria terminar sem referir e recordar a opinião de vários especialistas em transportes, que defendem ser a melhor solução ferroviária para o sul do Porto, a criação de linhas suburbanas, devido às distâncias envolvidas, entre outras considerações técnicas.

A pouca disponibilidade de dinheiro para investimento público exige reequacionar-se os vários projectos definidos. A própria líder do PSD pressionada a esclarecer quais os pequenos investimentos públicos que não considerava necessários, foi peremptória ao apontar a futura auto-estrada Porto – Coimbra, precisamente a A32, como um disparate.

Dada a oportunidade, porque não pensar-se numa linha ferroviária para o traçado previsto para a auto-estrada, aproveitando-o para a Alta Velocidade e possibilitando a circulação de outras composições de médio curso?

Em aniversário da linha do Vouga, voltar a falar-se em construir uma linha ferroviária, para servir uma vasta região, era o melhor presente para uma população que carinhosamente sempre tratou o seu comboio por “Vouguinha”.

 

(a publicar no dia 20/11/08)

quarta-feira, novembro 12, 2008

Salbutamol

            Na estante onde arrumo os livros, tenho uma pequena secção para os livros novos. Por vezes, crio uma pequena fila de espera, acumulando alguns títulos. A ordem de leitura não segue obrigatoriamente a sequência de chegada e por vezes, livros permanecem mais tempo do que o que merecem, à espera de serem lidos. 

A presença em S. João da Madeira do escritor Valter Hugo Mãe, em outubro passado, permitiu-me tirar dessa prateleira um livro sem qualquer página lida, intacto, com o objectivo de recolher uma assinatura do autor e assim, acrescentar valor a um exemplar de uma das edições de “O apocalipse dos trabalhadores”.

            Este não foi o principal motivo da minha presença na referida apresentação, obviamente. Pretendia conhecer melhor o escritor, a sua obra, antes de a ler. Uma oportunidade que nem sempre surge. Perceber as motivações para a escrita, a forma como se constroem os personagens de romances, tudo em discurso directo.

            Durante a conversa, noticiada nas páginas deste jornal, o escritor contou uma curiosa cena do quotidiano da povoação na qual habita, as Caxinas, ali entre Vila de Conde e a Póvoa de Varzim. Utilizando palavras semelhantes às que se seguem, Valter Hugo Mãe referiu os constantes actos de solidariedade entre as vareiras, quase todas asmáticas, que esquecendo-se dos seus ventiladores para atacar a maleita, pediam um emprestado na rua à primeira conhecida que passasse. Recebendo em troca, além da salvação, os conselhos apropriados de quem já passou pelo mesmo, sentindo a morte tão perto.

            Eu, asmático, não deixei de me rever no desespero das varinas. Em particular por ter num dos bolsos do casaco o meu ventilador, conhecido pelos doentes de asma, por bomba. Uma precaução motivada por uma sucessão de alergias, provocadas pelo contacto com uma série de reagentes: mudança de clima, presença de ácaros e o pêlo de animais, etc..

Não foi só estar com o objecto, que me fez sorrir. O relato do dia-a-dia vareiro era semelhante a um daqueles dias terríveis, para qualquer asmático: estar bem, sair de casa desprevenido, sem qualquer ventilador e passado um pouco, derivado ao contacto com um qualquer factor alérgico, começar a complicar a oxigenação do corpo.

            Não é costume andar “armado” com a bomba no bolso. Em geral, fica em casa. Por vezes, vejo-me obrigado a regressar aceleradamente a casa, para uma inalação salvadora. Outras vezes, tento uma farmácia. Ser conhecido como doente crónico, permite-me comprar o inalador, sem qualquer questão. Nos locais em que não me conhecem, vendo o estado em que me encontro, não criam obstáculos. Várias vezes, enquanto espero pela emissão do recibo, já a caixa está aberta e o ventilador na mão. Não por desconfiança mas, para uso imediato. Se se atrasam um pouco, já o ventilador sai da farmácia com uma dose a menos e com a dilatação dos brônquios efectuada, devido à intervenção da substância química salbutamol. Um alívio imediato a 1,8 cêntimos de euro por cada inalação, caso não seja comparticipada.

Uma dependência, que apesar de vários tratamentos alternativos, não consigo deixar.

Já fiz contas. Até hoje devo ter usado trezentos inaladores da marca mais conhecida dos asmáticos, o que equivale a sessenta mil doses para eliminação do sopro interno, semelhante aos dos pequenos felinos. Todos estes números serão aumentados, consoante a minha longevidade. Caso duplique a minha idade actual, poderei atingir as cem mil doses.

            Por agora, vou regressar à leitura. Precisamente a Valter Hugo Mãe. O livro referido anteriormente ficou logo lido, nos dias seguintes à apresentação, tal foi a impressão deixada. Na fila de espera ficou um outro título do mesmo autor. Um livro que o projectou como escritor, permitindo-lhe vencer o prémio José Saramago em 2007. O seu título é “o remorso de Baltazar Serapião”.

quarta-feira, novembro 05, 2008

Orquestra

Esta é a estória de Carlos, músico, tocador de tuba. Intérprete, vá lá. Membro de uma orquestra, por vocação e após longos anos de estudo. Um percurso difícil, trilhado a partir da infância, no momento em que interrompeu o sossego dos pais e proclamou a sentença futura: não quero mais aprender a tocar violino, prefiro tocar tuba.

Fez-se silêncio.

Os pais pediram-lhe que explicasse a nova escolha. Carlos, a medo, disse que preferia sons graves, que enchessem a sala. Os progenitores referiram vários instrumentos de sopro adjectivando-os. A beleza da flauta, o sublime clarinete, o enigmático oboé, o majestoso fagote, o triunfante trompete e de todos desdenhou Carlos. Os pais, entendidos em música, tentaram convencê-lo a tentar o sensual saxofone ou outros instrumentos de sonoridade grave, como o trombone e até as imponentes trompas. Sem efeito.

Carlos apreciava o som da tuba. Nos concertos a que assistia vibrava com o toque deste instrumento. Não muito dado ao esforço, verificava que nas grandes obras sinfónicas, a tuba tocava pouco, contudo, sobre isto nada disse aos pais. Estes lembraram-se de sugerir violoncelo, ou contrabaixo. Sim, contrabaixo, igualmente com um som grave, para Carlos seria mais fácil devido à analogia de instrumento de cordas. O filho já tinha pensado nisso, apreciava o som emitido, no entanto, o seu intimo sabia que encher os pulmões e conseguir tocar notas bem graves seria mais do seu agrado.

Tuba, quis rematar a conversa. O pai, que ia perdendo a paciência com a teimosia do filho, explicou-lhe as dificuldades possíveis em aprender a tocar o instrumento. Apesar disso, Carlos tinha a lição estudada e sabia que na Academia local era possível aprender, pois tinha já um professor e alguns alunos. A insistência final do pai, cedendo à vontade do filho, foi no sentido de o acautelar sobre o futuro como músico, dizendo-lhe que a partir de certa idade havia vontade de actuar mais em público, não apenas em audições de final de período mas, em projectos colectivos e sabia que não era fácil enquadrar uma tuba. “Daqui a uns anos, enquanto estudares no ensino secundário, as hipóteses de tocares em grupo será pertenceres à Filarmónica, interpretando músicas de um género diferente do que vais estudar, até porque aqui no concelho não vejo qualquer vontade em apoiar a criação de Orquestras”.

Os anos seguintes de Carlos passaram-se entre estudo de escalas e a sonhar estar em palco tocando os concertos de alguns compositores importantes, como Berlioz, Wagner e Bruckner, em especial os que integram solos de tubos. Aos dezasseis anos entrou para a banda filarmónica conforme o pai previra. O gosto pela música e a capacidade de execução do instrumento facilitaram-lhe o suporte harmónico, no entanto, passou a tocar de ouvido sem qualquer esforço de estudo ou de execução.

Não abandonou os estudos clássicos e percebeu os avisos recebidos do pai, ao escolher o seu instrumento. Não desistiu de entrar numa orquestra. Sofreu com o ostracismo dado pelo poder político aos músicos. Em idade de formação não lhes era atribuída nenhuma importância. Os seus colegas e amigos de desporto recebiam prémios e distinções, os melhores alunos da escola também. Para os músicos nada. O apoio dado à música em geral, pela autarquia, era no sentido de restauro de instalações e de promoção de concertos com músicos consagrados, oriundos de outros locais.

Carlos jamais desanimou. Prosseguiu os estudos superiores em música e no seu instrumento de eleição. Até que um dia conseguiu entrar numa orquestra de dimensão nacional. Um dia memorável, embora Carlos tivesse passado pelo embaraço que a seguir se relata.

Na sua estreia como novo membro, Carlos estava nervoso. A orquestra entrou em palco, os músicos com os seus instrumentos foram para as respectivas secções. Carlos colocou-se na parte de trás do palco, local reservado para os instrumentos de sopro, designados como metais. Atrás de si estavam os instrumentos de percussão, um pouco mais ao lado os restantes sopros, os instrumentos de madeira. Entre si e o maestro, vários colegas, cada qual com o seu arco, empunhavam violinos, os mais afastados de Carlos e mesmo à sua frente vários violoncelos e os seus colegas do contrabaixo.

Iniciado o concerto, o pensamento de Carlos fluiu, um mau hábito adquirido do tempo da adolescência. Olhava em redor, observando a magnificência da sala, completamente cheia. Reparava no público, nas suas caras de satisfação.

No tema inicial, a tuba não tocava. Chegou o momento de entrar em acção. Olhou para a pauta e reparou que a partitura estava vazia. Atrapalhou-se, não conseguindo assim tirar as folhas do local onde estavam arrumadas. O maestro fez sinal para iniciar o segundo tema. A tuba foi colocada ao colo e a boca aprontou-se. Seriam uns acordes e até tocar de novo, retiraria a pauta e colocava-a aberta na partitura.

Toda esta trapalhice, desconcentrou o músico que tocou várias notas completamente erróneas. Apesar da má cara do maestro, os restantes músicos prosseguiram a execução da melodia. Todos não, os do contrabaixo ficaram a rir-se e não se conseguiam concentrar. Ao lado de Carlos, os tocadores de trompas estavam mais que divertidos e riam-se também. O riso de uns contagiou os outros e em certo momento, o maestro vendo que só os violinos o seguiam deu por finalizada a música.

O público sem se aperceber do sucedido bateu palmas. Os mais melómanos não sabiam como reagir. Carlos extremamente transpirado colocou a pauta no sítio, pediu desculpa ao maestro, esperou que as palmas finalizassem e que os seus colegas parassem de rir.

Com alguma naturalidade, o maestro dirigiu-se ao público explicando que retomariam o concerto, mal terminasse o ataque de riso dos membros da orquestra, lembrando-se de uma história apropriada com outra orquestra, que culminou num concerto a todos os níveis brilhantes.

Compostos todos músicos, escusado será relatar o memorável concerto ouvido pela assistência.

(a publicar dia 06/11/08)

quarta-feira, outubro 29, 2008

Mediáticos

            A hipotética candidatura de Pedro Santana Lopes à Câmara Municipal de Lisboa não deixou ninguém indiferente. Alguns assustaram-se e reagiram com indignação. Outros amedrontaram-se e pensaram logo em coligações. Houve quem sorrisse, uns por escárnio, outros por satisfação.

            Independentemente do fôlego político do presumível candidato, o anúncio - utilizando a velha técnica de difusão de informações, o boato - abriu a campanha política para as eleições autárquicas de Outubro de 2009.

            Um pouco por todo o país, surgem informações sobre várias candidaturas a outras autarquias, demonstrando-se com isto, a apetência dos demais candidatos pela mediatização pessoal.

            De nada serve às direcções nacionais dos partidos tentarem, de alguma forma, coordenar as escolhas e eventuais candidaturas para cada concelho. Com uma voraz ansiedade são apresentados e votados nomes, ora pela concelhia, ora pela respectiva distrital, mesmo sabendo-se que nalguns casos essa escolha é da responsabilidade do líder do partido, ou então, está delegada num elemento da direcção nacional, como é o caso do PSD.

            Nesta perspectiva, a tarefa destinada a Castro Almeida (como vice-presidente do PSD) não se apresenta nada fácil. Tendo que esgrimir argumentos e equilibrar várias sensibilidades de um partido extremamente dividido, pouco tempo lhe restará para seguir os dossiers da política local, em especial, os assuntos apresentados na campanha eleitoral de há quatro anos e que tardam a ser resolvidos, além do particularmente inacessível encerramento da urgência hospitalar.

            Pela actual conjuntura política nacional, coloca-se como certa a sua recandidatura à autarquia local. Os elogios recebidos e o visível trabalho efectuado à frente da Câmara Municipal de S. João da Madeira, permitem-lhe encarar a reeleição sem qualquer problema.

            Tudo será imprevisível, caso a oposição política local se decida a disputar as eleições pensando em vitória.

            Pensar em vitória significa apresentar a candidatura de uma pessoa mediática. Um rosto bastante conhecido do público local. Para agradar ao eleitorado, a opção deve ter um efeito de surpresa e recair numa celebridade.

            Uma cara bastante conhecida da televisão, tal como o PSD inventou Francisco Moita Flores para autarca de Santarém ou aproveitou Fernando Seara para a Câmara Municipal de Sintra.

            Uma figura nacional representativa da diáspora sanjoanense.

            Com estas características, acrescentando-se tratar-se de um nome, que várias vezes foi capa de imensas revistas, o leitor terá feito o exercício de triagem de várias personalidades e eleito o nome de Bárbara Guimarães, certamente.

            Uma candidata que expele simpatia, sobejamente conhecida, que não perderia tempo a dar-se a conhecer.

            Em 2005, no apoio à campanha eleitoral para a Câmara Municipal de Lisboa, Bárbara Guimarães surpreendeu pela facilidade nos contactos com a população e mostrou uma proximidade com os eleitores até aí desconhecida.

            Com uma candidata tão mediática, as eleições em S. João da Madeira passariam a estar debaixo das atenções nacionais, o que se repercutiria em reportagens televisivas ou de outros órgãos de comunicação social. Isto seria do agrado do eleitorado local, que veria com bons olhos a projecção da cidade por todo o país.

            Pela experiência profissional de Bárbara Guimarães, a sua envolvência no mundo do espectáculo e das artes, S. João da Madeira ganharia numa fase imediata em animação e atracção.

            O desenvolvimento cultural de S. João da Madeira poderia ser finalmente conseguido e não passar de uma promessa adiada e com isso introduzir-se uma modernização no pensamento da sociedade local.

            Terá este desafio cabimento na vida desta ilustre sanjoanense?

 

(a publicar no dia 30/10/08)

                         

quarta-feira, outubro 22, 2008

Prazeres de Outono

Retiro o segundo pé do chão e hop, sustento-me em cima da balança. No visor analógico, aparecem números há muito esquecidos. Ajeito melhor os pés, inclino de novo a cabeça, não há dúvidas, emagreci.

O meu peso actual afasta-me de ser considerado uma pessoa de peso excessivo, segundo o cálculo do índice de massa corporal e das categorias associadas.

Resultado de uma acção (ou princípio) na refeição que escrupulosamente tento cumprir: não repetir.

A esta restrição diária, com dias de trabalho, por vezes, bastante agitados, procuro nos dias amenos e solarengos de fim-de-semana aproveitar para promover passeios pedestres familiares. Um dos melhores prazeres desta estação.

O destino actual, enquanto a meteorologia o permitir, são os caminhos que limitam as águas da ria de Aveiro. Nas margens do seu estuário, uma diversidade de aves resiste à toxicidade, que impede a apanha de bivalves.

A observação ornitológica ganha contornos de programa familiar. O conhecimento aumenta e através dos binóculos aprende-se a distinguir várias espécies. O fascínio pela aves de rapina e especificamente pelas sagradas águias, são agora acompanhadas pela observação de flamingos, garças, cegonhas e pequenas aves limícolas, como a narceja (na foto), cujo nome surpreendentemente me foi assegurado pelo meu filho, agora com sete anos.

A felicidade de viver próximo de rotas migratórias permite seguir voos de patos, ou vê-los sossegados às centenas, a salvo de qualquer espingarda de mira afinada, devidamente protegidos dentro da reserva natural de S. Jacinto.

Tudo muda com condições climatéricas adversas. Com frio e dias de chuva, o corpo recolhe-se e surgem opções mais caseiras. Em resumo, petiscar e molengar.

Como estou um pouco afastado do limite máximo do índice de massa corporal da categoria saudável, posso encarar o Outono sem restringir a ingestão de alimentos hiper-calóricos típicos desta época do ano.

Os meus prazeres gastronómicos são pequenos e não incluem pratos especiais, nem típicos, nem tão pouco característicos. Ao profiláctico mel que me vai permitindo manter os níveis de saúde em estado razoável, acrescento algumas das preferências: o leite-creme queimado na hora; as enfarruscadas castanhas assadas devidamente encartuchadas; fatias de broa de milho, torradas, devidamente barradas com manteiga (ou derivados com menor índice de gordura); ou a sêmea (a eleita é a da padaria da rua de casa dos meus pais); tabletes de chocolate comidas à dentada; um doce que aprendi a apreciar na Beira Alta, nas cercanias das terras do Conde de Videmonte, doce de abóbora com requeijão. Tudo em doses apropriadas e se a ocasião o proporcionar. Em alguns serões opto por um copinho de Favaios, ou pelo néctar das encostas do Douro num pequeno cálice.

A possibilidade de praticar o direito à preguiça é que infelizmente me é vedada. Se nos dias quentes de verão, adoraria passar uma manhã de um dia de trabalho, junto ao mar, agora, numa destas tardes curtas e cinzentas, que se advinham sobretudo húmidas, gostaria de permanecer em casa optando por uma das várias actividades de lazer: ouvir discos antigos ou actuais; fazer zapping aleatório, à espera de algo que prenda a atenção num canal televisivo; sintonizar uma rádio, de preferência via internet; navegar pela blogada, deixando comentários ocasionais; decidindo-me pela leitura de um dos livros que aguardam vez na prateleira, ou pela escrita de um texto não tão “light” como este, com ideias mais calóricas. Para qualquer uma destas escolhas, o sofá da sala é sempre o melhor suporte.

Como essas tardes vão demorar muito a chegar, aproveito o melhor que posso os tempos livres, ou seja, o serão familiar, por vezes, já aquecido pelo fogo envidraçado.

Já nos fins-de-semana, espero que as condições climatéricas durante as horas de brilho solar sejam favoráveis ao passeio pedestre, senão, inventa-se outra actividade, em família.

(a publicar no dia 23/10/08)

quarta-feira, outubro 15, 2008

Bem-vindo ao norte

A obra literária de Teixeira de Pascoaes é eterna. Este escritor de Amarante, poeta do Saudosismo, foi marginalizado pelo seu ideal nacionalista. Incompreendido pelos seus contemporâneos, que o acusavam entre outras coisas de utópico e passadista, o pensamento de Pascoaes atravessou o século passado e é hoje reconhecidamente um importante legado na percepção de quem somos e para onde vamos.

A retórica romântica, saudosista e sebastianista da utopia de Teixeira Pascoaes irrompeu devido à realidade humilhante e traumatizante existente em Portugal no período Oitocentista, após o ultimato Inglês.

Independentemente do esoterismo e misticismo incluídos na filosofia da saudade, Teixeira de Pascoaes criando a sua doutrina político-social (designadamente em “Arte de Ser Português”), observou detalhadamente as características do povo Português, sendo certo que quase um século depois, muitos conceitos descritos nas qualidades e defeitos da “Alma Pátria” perduram na nossa especificidade.

Na história das “Cortes” Portuguesas, peculiares desde a Fundação “pelo belo espírito de independência política” da intervenção do povo junto do Rei, limitando inclusivamente a sua acção, o escritor do Tâmega encontrou o suporte para contrapor à ideia de Estado centralizador, muito omnipresente (e omnipotente por influência francesa), o conceito do Município. Esperava Teixeira de Pascoaes, que o município fosse mais abrangente do que paróquias e freguesias; entre a família e a Pátria não existissem intermediários na forma de “partidos, facções, clientelas, etc.”; idealizou ainda o governo municipal, com a reunião desses governos a formar as “Cortes”, ou seja, o Estado.

Enganou-se, neste capítulo. Além disso, não previu que os Municípios fossem vitimas dos tais defeitos característicos do povo português, que segundo Pascoaes são: falta de persistência; vil tristeza; inveja; vaidade susceptível; intolerância; espírito de imitação.

Na prática poderíamos exemplificar cada um destes defeitos, pela seguinte correspondência: inúmeros projectos municipais esquecidos, num silêncio absoluto; abandono de áreas municipais ao estado decrépito; municípios correndo pelo investimento público, pela abertura de uma qualquer delegação do Estado, muitas vezes apenas para ultrapassar o concelho vizinho; o endividamento autárquico, nalguns casos problemático; assessores para tudo e mais alguma coisa ou empresas municipais constituídas com administradores a serem pagos principescamente, com activos a desvalorizarem constantemente e sendo a facturação inferior aos gastos dessas empresas; finalmente, a construção de quiosques ou cafés modernos em espaços públicos, ou de parques infantis com piso seguro, redes de ciclovias, ou o trânsito condicionado por rotundas e separadores são alguns dos exemplos das opções de algumas autarquias, que imitando o vizinho primam pela quantidade e pela extensão, ou então pela suposta qualidade superior.

Um século depois das palavras do referido escritor, vemos que a prática dos agentes do “município”, salvaguardada pela hipótese de substituição inerente aos regimes democráticos, reduziu quase tudo à lógica do feudalismo.

Apesar da melhoria significativa da qualidade de vida dos munícipes, o desenvolvimento estrutural do país não pode continuar dentro da lógica actual.

Uma nova entidade deveria surgir entre o Município e a Pátria.

As regiões poderão ser esse factor de desenvolvimento estrutural, sem qualquer perigo para o País, apesar de a Europa ser cada vez mais adepta da desagregação de Estados.

Sem querer seguir o texto pela enumeração de novos e inesperados adeptos da regionalização, nem pelo elogio à reorganização de vários Ministérios, de acordo com um mapa comum, sinto que a criação e aumento de competências das áreas metropolitanas das duas principais cidades do país e a forte unidade regional existente no sul do país, permitem encarar o desafio da regionalização de modo diferente da referendada e consequentemente derrotada “divisão” administrativa do país, proposta há dez anos.

Veja-se, como exemplo da nova sensibilidade para a regionalização, como o bairrismo sanjoanense tem sido substituído pelo orgulho de pertencer à Área Metropolitana do Porto.

Na Assembleia da República na semana passada arriscou-se discutir um assunto extra ao programa do partido que forma Governo.

De fora da sessão legislativa e do programa do actual Governo ficará a regionalização. Para as eleições de 2009 deverá constar do programa eleitoral de quase todos os partidos com assento parlamentar.

Quero tornar claro que no supracitado referendo votei duplamente não, em resposta àquelas perguntas disparatadas colocadas no boletim eleitoral. Para não ser mal interpretado por qualquer leitor mal intencionado sobre a minha vontade, se a regionalização voltar a ser apresentada de igual modo em próximo referendo, continuarei a votar não, embora reconheça vantagens competitivas na criação de regiões. Espero, contudo, que as designações futuras das regiões a criar no norte e centro do país, saiam da lógica actual e se enquadrem nos valores locais, tal como existe a sul: Algarve e Alentejo.



(a publicar no dia 16/10/08)

quarta-feira, outubro 08, 2008

Madrid

            As viagens ao abrigo de negócios têm um inconveniente, não controlamos o nosso tempo. A hora do voo de regresso condiciona o tempo que resta livre e por vezes, vemo-nos e desejamo-nos fazendo horas nos aeroportos para o início do check-in, ou por vezes em zonas pouco nobres de cidades cosmopolitas, acercadas do nosso imediato destino final.

            Em Madrid não foi assim.

            Após duas noites mal dormidas, com boa mesa e companhia animada, a actividade proposta terminava no final de uma tarde. O voo era apenas à noite e sobravam um par de horas, que nos permitiria aproximarmo-nos do centro da cidade. Oportunidade para uns comprarem as lembranças para familiares, outros para ver o pulsar de uma cidade.

            Numa qualquer rua, cujo nome nunca soube, perdi o meu olhar pelos transeuntes. Uma sensação fantástica de ver passar carros, pessoas, num dia abafado de Maio, ainda que encoberto.

            Na minha contemplação senti-me observado. Mirando em redor, vi um rosto sublime, com uns olhos igualmente belos a fixar-me. Uma elegante rapariga, bem vestida, não desviou o olhar e eu por uma única vez, perdi a vergonha, continuei a apreciá-la. Sorri, num sorriso meio tímido, sem saber se seria correspondido. A elegância da minha observadora transbordou com um belo sorriso, que faria perder o controlo a qualquer um.

            Afastados uns passos no passeio, eu encostado ao edifício, ela na beira do passeio, esperando um táxi. Uma curta distância separando duas vidas. O objecto esperado aproximava-se. Teria que decidir. Dava os passos, entrava no táxi, ou então, impedia-a de entrar, de forma educada e cortês. Ou pelo contrário, ficaria onde estava e sonharia.

            A decisão teria de ser rápida, tinha que ponderar entre a desconhecida, a aventura, o permanecer na grande cidade, o perder o avião e faltar ao trabalho nos dias seguintes e do outro lado da balança, o regresso à vidinha cumpridora e monótona. A prudência aconselhava ponderar a possibilidade de desilusão pela incerteza do momento.

            O táxi parou. A porta abriu-se. Um último olhar entre dois seres cruzou aquele passeio. Um novo sorriso. O corpo elegante desapareceu no interior do automóvel. A porta fechou-se e o carro arrancou logo. Não tive tempo para ver se a cabeça ainda se voltou. Outros carros taparam-me a visão.

            Uma voz chamou-me à realidade. “Pensei que perderia o avião!” – disseram-me. Acrescentando, “muito gira”.

            Uma mútua e sonora gargalhada, pôs uma pedra no assunto.

A vida por vezes, resume-se aos sonhos.

 

(texto a publicar (?) no dia 9/10/08)

 

quarta-feira, outubro 01, 2008

Piano

            O telefone tocou na oficina do departamento de manutenção. Bernardo por se encontrar mais perto, atendeu educadamente. Do outro lado da linha, o Sr. Ferreira, responsável pela área administrativa e financeira da empresa, solicitava um técnico para reparação da máquina fotocopiadora. Transmitido o recado à chefia, Bernardo ouviu um imediato “vai tu”. Acrescido do paternalista “se tiveres dificuldades chama”.

            Era a primeira vez que Bernardo era chamado a reparar uma máquina fora da área de produção. Pelo sim, pelo não, precaveu-se levando consigo um jogo de chaves e o indispensável multímetro. Dirigiu-se à área administrativa e ao atravessar o longo salão para alcançar a sala em que estava instalada a máquina avariada, avistou um piano. Estremeceu.   Aproximou-se do bonito instrumento de cauda, castanho-escuro e não resistiu a abrir a tampa. Olhou em redor, só então pensou na maçada que seria ser repreendido por ter ousado mexer no piano. Não viu ninguém. A sua mão direita aproximou-se do teclado. O polegar posicionou-se na tecla branca atrás de duas teclas pretas e desceu suavemente. Um dó cristalino ecoou pela sala. Emocionado, fez uma pausa e repetiu. Desta vez com os restantes dedos da mão direita a seguirem a escala das notas musicais até à nota sol. Indicador, médio, anelar e mindinho. Com o mindinho levantado, desceu-o de novo e invertendo a sequência na escala tocou: sol, fá, mi, ré, dó. Para cada nota musical, um dedo. Estava pronto para repetir, só que ouviu uma porta a abrir-se e parou, fechando a tampa do teclado do piano.

            Caminhou para a sala, em que sabia estar a fotocopiadora. Ao entrar cumprimentou os presentes. O Sr. Ferreira apressadamente o informou sobre a necessidade do departamento de contabilidade de ter a máquina a trabalhar, dado estar em curso um processo delicadíssimo de fecho do mês. Bernardo ouviu, tentando perceber as palavras do Sr. Ferreira. Aproximou-se da máquina, ficando a sós com o responsável do departamento. Este explicou-lhe a avaria da máquina e prontamente deu o seu parecer pouco “técnico”, para resolução do mesmo. Bernardo ouviu, sem ripostar. Delicadamente optou por fazer o seu próprio diagnóstico, carregando nas teclas funcionais da máquina. As folhas saíam em branco. Procurou perceber o mecanismo da máquina, enquanto o Sr. Ferreira lhe assegurava tratar-se de um determinado componente. Bernardo fazia que não ouvia, concentrado no seu trabalho. Abriu as tampas laterais da máquina, não verificando qualquer obstrução. Percebeu que os sensores inseridos dentro do equipamento estavam funcionais e passou a analisar o problema na perspectiva mecânica. Entendeu o mecanismo da máquina e verificou estar uma pequena correia fora do seu lugar, o que impedia o deslocamento da célula de leitura. Nada disse ao Sr. Ferreira. Pegou nas chaves e deixando a tampa superior aberta, começou a tirar os parafusos que prendiam o vidro superior. O Sr. Ferreira quis impedi-lo. Bernardo explicou-se e sossegou o homem. Passado dois minutos a máquina estava funcional.

            No regresso à oficina, parou de novo junto ao piano. Levantou de novo a tampa do teclado. Voltou a colocar a mão direita sobre o teclado e com os cinco dedos percorreu a escala. Lembrou-se da sua infância, de uma melodia que aprendera ao piano, num exercício de iniciação. Dó, ré mi e depois mi, mi, mi. Mi, fá, sol e depois sol, sol, sol. Fá, mi, ré e depois ré, ré, ré. Mi, ré, dó e finalmente dó, dó, dó. Com esta sequência de acordes, que repetiu por mais duas vezes, os seus olhos encheram-se de lágrimas.

            Tocar piano, era voltar à infância. Era recordar os tempos em que a vida dos seus pais corria bem e lhe foi proporcionado o contacto e aulas de piano. Os problemas financeiros obrigaram a família a mudar de terra e a viver uma vida mais modesta. Infelizmente para ele, o ensino de piano ficou para trás. Bernardo adorava o piano, as aulas. Os pais não encontraram nenhuma solução para assegurar a continuação dos seus estudos musicais. Na nova morada, não havia nenhuma escola acessível, apenas professoras particulares, que não estavam ao alcance das posses dos pais. Recordar tudo isto fazia-o ficar triste. As oportunidades perdidas. A vida condicionada. O abandono escolar prematuro e o ingresso no mundo profissional, sempre com a ideia de progredir nos seus estudos em horário nocturno. O estudo do piano ficara irremediavelmente perdido.

            Nessa noite Bernardo não dormiu. Toda a noite pensou no piano. Fez planos para se aproximar dele, para lhe voltar a tocar. Lembrou-se dos seus livros de estudo de piano., arrumados numa caixa com os pertences da sua infância. Procurou-a nos armários, na arrecadação, até que finalmente a encontrou. Vasculhou o seu conteúdo. Ao encontrar um dos livros, deveriam estar ali dois mas, só encontrou um, abriu numa das páginas iniciais e ali viu as claves, uma para cada mão. As pautas, as notas impressas e seguindo por cada linha de referência, voltou a saber ler as notas. Continuou a folhear as páginas e a recordar as aulas do seu passado. Ver a música que em tempos estudara, que trauteara vezes sem conta, retirou-lhe qualquer cansaço nocturno.

            Na manhã seguinte, Bernardo aproveitou uma quebra no serviço para voltar para junto do piano. Voltou a tocar. Desta vez, uma escala completa e com as duas mãos. Apercebeu-se de barulho na contabilidade e rapidamente seguiu para junto da máquina de fotocopiar. Ao ver Bernardo naquela área, o Sr. Ferreira estranhou e questionou-o sobre a sua presença sem ser solicitada. Bernardo não precisou de pensar na desculpa a dar. Preparado, disse ter vindo verificar se a máquina estava em ordem, pois tinha ficado com medo de a correia não ter ficado no sítio. O chefe dos administrativos sorriu e acompanhou Bernardo até ao final do salão, não lhe dando hipótese de tocar de novo.

            Sábado, terminado o trabalho junto à produção, Bernardo decidiu aproximar-se do salão. Tinha verificado que não estava ninguém na contabilidade, nem nos restantes departamentos e com o livro da sua infância dentro da bata, para que ninguém o visse, seguiu para o seu destino, informando onde se encontraria. Ao abrir a porta de acesso ao salão, ficou estático. Nada. Não se via o piano. Olhou melhor. Ligou as lâmpadas, quebrando o lusco-fusco daquela sala grande e nada. O piano tinha sido retirado. Procurou nos compartimentos contíguos, olhou à procura de marcas no chão e realmente não via nada. O piano desaparecera.

            Voltou lívido para junto da produção e dali para a oficina. Disfarçou a sua frustração o melhor que pôde, quando era chamado para junto de uma máquina. Chegado a casa, pousou o livro em cima da mesa da cozinha. A esposa ao ver aquele livro que desconhecia e a má cara de Bernardo, ficou apreensiva. Ficou em silêncio e muito mais tarde perguntou-lhe para que queria ele um livro de música. Sem demoras, Bernardo respondeu: ainda vou a tempo de estudar piano.

 

(a publicar dia 02/10/08)

terça-feira, setembro 23, 2008

Memória

António havia recebido o convite para um jantar de amigos de outrora, através dos seus pais. Os organizadores não tinham outra forma de o contactarem, senão o número de telefone da casa dos seus progenitores. De início, António considerou normal o procedimento, só depois reflectiu sobre a quantidade de anos que tinham passado, sem que alguma vez tivesse encontrado algum dos seus antigos colegas e amigos. A melhor evidência era não ter recebido nenhum mail, nem sms, nem chamada no telemóvel. Tudo isso tinha aparecido anos depois da comum convivência.

Como tinha que se deslocar alguns quilómetros, António por prudência e respeito pelos amigos, optou por sair do emprego atempadamente. Entrou no restaurante marcado, descoberto com facilidade, dirigiu-se ao primeiro empregado que avistou e pela resposta obtida, apercebeu-se que tinha sido demasiado cauteloso com o horário. Ainda assim, preferiu sentar-se na mesa indicada. Ao tirar o casaco, pediu um aperitivo que foi saboreando.

Ficou à espera, pensando na quantidade de anos que tinham passado. Distraiu-se a contar os lugares marcados e a fazer uma previsão de quem seriam os restantes convivas.

Ao fim de alguns minutos chegou um grupo de antigos colegas. Sem esforço recordou as caras e associou a cada um o nome, apesar do tempo passado. Cumprimentaram-se efusivamente e trocaram a conversa de circunstância: a morada, a profissão, o estado civil, os filhos, a descrição da monotonia dos dias de semana e os programas de fim-de-semana, que afastam as pessoas para longe do seu passado.

O grupo foi crescendo, com a chegada dos outros convidados. Trocaram iguais informações entre aqueles que já não se viam há bastante tempo. Aos poucos introduziram-se outros temas nas várias conversas: a saúde pessoal e de familiares, histórias do presente, projectos para o futuro, as viagens, as férias de sonho, o sucesso dos filhos, os hobbies, o futebol, entre outras.

Quando a propósito uma ou outra recordação dos tempos de juventude. Um ou vários momentos vividos, que por terem sido tão peculiares, merecem a sua evocação.

Nestas ocasiões relembra-se os amigos comuns, sem sentido estarem presentes no repasto, embora sejam elos de ligação entre pessoas conhecidas e sobre os quais devemos informar do seu estado. António, já com todos os convivas sentados à mesa, lembrou-se disso, enquanto falava com a sua ex-colega Márcia e contou-lhe que Frederico ia ser pai de gémeos. Quem? Márcia não se recordava de nenhum Frederico. António tentou encontrar várias formas de lhe recordar o nome, a pessoa, os momentos vividos pelos três. Márcia não se lembrava de nada. Não vale a pena insistir, disse-lhe Márcia. Não era um assunto de maior importância e António já não estava com Márcia seguramente há dez anos. O Frederico tinha desaparecido da vida de ambos um tempo antes e pelas voltas da vida, António voltou a relacionar-se com ele.

Enquanto o jantar era servido, a conversa prosseguiu e António fez várias alusões ao seu passado em comum com Márcia. Um concerto, ela não fazia ideia. Um jantar numa recôndita vila do país, nada. Um outro programa e igualmente nada. Não desesperou e não duvidou da sua sanidade, nem criticou a memória da sua amiga.

Apesar de tudo, desde o início do jantar sentiu sempre que o reencontro entre ambos estava coerente com a relação que tinham mantido no passado. Interesse mútuo e compreensão pelas conversas e preocupações do outro, davam para perceber que a afinidade entre ambos não tinha sido esquecida. Mesmo dez anos depois.

Não sendo o problema dela, o mal estava nele. Na sua memória que fixava coisas insignificantes. Recordava-se de pessoas sem interesse algum, de assistir a concertos que não tinham feito história, de procurar aldeias e vilas para obter uma refeição, sem qualquer condimento especial, em restaurantes entregues à indiferença e por aí adiante.

Percebeu como se tinha enganado no passado. Como tinha sido desinteressante a sua vida. Memórias pessoais sem qualquer significado para o presente, nem para manter uma conversa em jantares de pessoas com vivência em comum.

Tentou com Gustavo, sentado à sua frente, encontrar traços do passado. O resultado foi igual ao obtido com Márcia.

Enquanto Márcia, sentada à sua direita conversava alegremente com a amiga do outro lado, António virou-se para a esquerda e escutou uma história, que bem recordava. Acrescentou uns pormenores à narrativa de Miguel, que exercitava a memória do período juvenil, sentindo que o seu acréscimo não era reconhecido por ninguém. Podia ter ouvido um sensato “já não me lembrava”, ou um entusiástico “pois foi!”. Nada disso. Apenas um indiferente “não me lembro”, seguido de desconcertantes “nem eu”.

Sentiu que estava ali a mais.

Simulou a recepção de um telefonema, alegou a necessidade de uma saída urgente. Providenciou o pagamento do seu jantar, vestiu o casaco, despediu-se e saiu, sem esperar que lhe fosse servido o café.


(a publicar dia 25/09/08)